Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Ensaios teóricos sobre os espelhos mágicos

O nome de espelhos mágicos é dado a objetos de reflexos geralmente brilhantes, tais como o gelo, placas metálicas, garrafas, vidros, etc., nos quais certas pessoas veem imagens que lhes retratam acontecimentos afastados, passados, presentes e às vezes futuros, e as põem em condições de responder às perguntas que lhes são dirigidas. O fenômeno não é extremamente raro. Os espíritos fortes os taxam de crença supersticiosa, efeito da imaginação, charlatanice, como tudo o que não podem explicar pelas leis naturais conhecidas. O mesmo se dá, segundo eles,com todos os efeitos sonambúlicos e mediúnicos. No entanto, se o fato existe, sua opinião não poderia prevalecer contra a realidade, e estamos fortemente propensos a admitir a existência de uma nova lei, ainda não observada.

Até agora não nos estendemos sobre este assunto, malgrado os numerosos fatos que nos foram relatados, porque temos por princípio não afirmar senão aquilo que compreendemos, tendo por princípio dizer, tanto quanto possível, o como e o porquê das coisas, isto é, juntar ao relato uma explicação racional. Mencionamos o fato com o testemunho de pessoas sérias e respeitáveis, mas, admitindo a possibilidade do fenômeno, e mesmo a sua realidade, ainda não tínhamos visto com bastante clareza a que lei ele podia ligar-se para estarmos em condições de lhe dar uma solução. Por isso nos abstivemos. Os relatos que tínhamos à vista, aliás, poderiam estar carregados de exagero; eram necessários, sobretudo, certos detalhes de observação, os únicos que podem ajudar a fixar as ideias. Agora que vimos, observamos e estudamos, podemos falar com conhecimento de causa.

De início relatemos sumariamente os fatos que testemunhamos. Não pretendemos convencer os incrédulos; queremos apenas tentar esclarecer um ponto ainda obscuro da Ciência Espírita.

Durante a excursão espírita que fizemos este ano, tendo ido passar alguns dias em casa do Sr. W..., membro da Sociedade Espírita de Paris, no cantão de Berne, na Suíça, este último nos falou de um camponês das cercanias, torneiro de profissão, que goza da faculdade de descobrir fontes e de ver num copo as respostas às perguntas que lhe dirigem. Para a descoberta das fontes, ele às vezes se transporta aos lugares e se serve da bagueta utilizada em semelhantes casos; outras vezes, sem se deslocar, serve-se de seu copo e dá as indicações necessárias. Eis um notável exemplo de sua lucidez.

Na propriedade do Sr. de W... havia um conduto de águas muito longo, mas, por força de certas causas locais, acharam preferível que a tomada d’água fosse mais próxima. A fim de, se possível, poupar escavações inúteis, o Sr. de W... recorreu ao descobridor de fontes. Este, sem deixar o seu quarto, lhe disse, olhando em seu copo: “No percurso dos tubos existe outra fonte; está a tantos pés de profundidade, abaixo do décimo quarto tubo, a partir de tal ponto.” A coisa foi encontrada tal qual ele havia indicado. A ocasião era muito favorável para deixar de aproveitá-la, no interesse de nossa instrução. Então fomos à casa desse homem, com o Sr. e a Sra. de W... e duas outras pessoas. Não deixam de ser úteis algumas informações sobre essa pessoa.

É um homem de sessenta e quatro anos, bem alto, esguio, de boa saúde, posto que debilitado e andando com dificuldade. É protestante, muito religioso e lê habitualmente a Bíblia e livros de preces. Sua enfermidade, como consequência de uma doença, data da idade de trinta anos. Nessa época é que a faculdade se lhe revelou. Ele diz que foi Deus que lhe quis dar uma compensação. Seu rosto é expressivo e alegre, o olho vivo, inteligente e penetrante. Ele só fala o dialeto alemão da região e não entende uma palavra de francês. É casado e pai de família; vive do produto de alguns lotes de terra e de seu trabalho pessoal, de sorte que, sem estar numa posição fácil, não passa necessidades.

Quando desconhecidos vão à sua casa para consulta, seu primeiro movimento é de desconfiança. Ele sonda de certo modo as suas intenções e, por pouco desfavorável que seja essa impressão, responde que só se ocupa de fontes e recusa qualquer experiência com seu copo. Sobretudo recusa-se a responder às perguntas que poderiam visar a cupidez, como a busca de tesouros, as especulações aventurosas, ou a realização de algum desígnio mau, numa palavra, a todas as que poderiam ferir a lealdade e a delicadeza. Ele diz que se se ocupasse dessas coisas, Deus lhe retiraria a faculdade. Quando alguém lhe é apresentado por pessoa conhecida, e se essa pessoa lhe é simpática, sua fisionomia torna-se aberta e benevolente. Se o motivo pelo qual o interrogam for sério e útil, ele se interessa e se compraz nas pesquisas. Se as perguntas forem fúteis e de pura curiosidade, se se dirigem a ele como a um ledor da sorte, não responde.

Graças à presença e à recomendação do Sr. de W..., tivemos bastante sorte de estar em boas condições em sua presença e só tivemos que nos felicitar por sua cordial acolhida e sua boa vontade.

Esse homem é da mais completa ignorância no que concerne ao Espiritismo; ele não tem a menor ideia dos médiuns, nem das evocações ou da intervenção dos Espíritos, nem da ação fluídica. Para ele, sua faculdade está nos nervos, numa força que ele não compreende, nem jamais procurou compreender porque, quando quisemos fazer com que ele dissesse de que maneira via em seu copo, pareceu-nos que era a primeira vez que sua atenção era chamada para tal ponto. Ora, era para nós uma coisa essencial; só após algumas perguntas sucessivas é que chegamos a compreender, ou melhor, a desembrulhar o seu pensamento.

Seu copo é um copo comum para beber, mas vazio. É, porém, sempre o mesmo, e que só serve para tal fim. Ele não podia usar outro copo para isso. Na previsão de um acidente, foi-lhe indicado onde podia encontrar outro para substituí-lo. Tendo-o obtido, guarda-o de reserva. Quando o interroga, segura-o no côncavo das mãos e olha dentro dele; se o copo estiver sobre a mesa, ele nada vê. Quando fixa o olhar no fundo, parece que os olhos se velam por um instante, logo tomando seu brilho habitual; então, olhando alternativamente para o copo e para os interlocutores, fala como de costume, dizendo o que vê e respondendo às perguntas de maneira simples, natural e sem ênfase. Em suas experiências ele não faz qualquer invocação, não emprega nenhum sinal cabalístico, não pronuncia fórmulas nem palavras sacramentais. Quando lhe fazem uma pergunta, diz ele, concentra a atenção e a vontade no assunto proposto, olhando no fundo do copo, onde se formam imediatamente as imagens das pessoas e das coisas relativas ao objeto de que se trata. Quanto às pessoas, descreve-as física e moralmente, como o faria um sonâmbulo lúcido, de maneira a não deixar nenhuma dúvida quanto à sua identidade. Também descreve, com maior ou menor precisão, lugares que não conhece. Isto destrói a ideia de que o que vê é um jogo da sua imaginação. Quando ele disse ao Sr. de W... que a fonte estava a tantos pés abaixo do décimo quarto tubo, certamente não podia obter a informação de seu próprio cérebro. Para se tornar mais inteligível, ele se serve, se necessário, de um pedaço de giz, com o qual traça na mesa pontos, círculos, linhas de vários tamanhos, indicando as pessoas e os lugares de que fala, sua posição relativa, etc., de maneira a não ter que mostrá-las quando para ali retorna, dizendo: É este que faz tal coisa ou é em tal ponto que tal coisa se passa.

Um dia uma senhora o interrogava sobre a sorte de uma mocinha roubada por boêmios há mais de quinze anos, sem que jamais tivessem tido notícias suas. Partindo, à maneira dos sonâmbulos, do local onde a coisa se havia dado, ele seguia os traços da menina que dizia ver no copo, e que tinha, segundo ele, seguido pelas bordas de uma grande água, isto é, o mar. Afirmou que ela vivia, descreveu sua situação, sem contudo poder precisar o lugar de sua residência porque, disse ele, ainda não havia chegado o momento de ser devolvida à sua mãe; que antes deveriam realizar-se certas coisas que especificou e que então uma circunstância fortuita faria com que a mãe reconhecesse sua filha. A fim de melhor precisar a direção a seguir para encontrá-la, ele pediu que de outra vez lhe trouxessem uma carta geográfica. Esse mapa lhe foi mostrado em nossa presença, no dia de nossa visita; mas, como ele não tem qualquer noção de geografia, foi preciso explicar-lhe o que representava o mar, os rios, as cidades, as estradas e as montanhas. Então, pondo o dedo sobre o ponto de partida, ele indicou o caminho que levava ao lugar em questão. Posto se tivesse passado algum tempo depois da primeira consulta, ele se recordou perfeitamente de tudo quanto havia dito e foi o primeiro a falar da menina, antes que o interrogassem.

Como o assunto ainda não foi solucionado, nada podemos prejulgar quanto aos resultados de suas previsões. Diremos apenas que, em relação às circunstâncias passadas e conhecidas, ele tinha visto com muita exatidão. Citamos o caso apenas como amostra de sua maneira de ver.

Quanto ao que pessoalmente nos concerne, pudemos igualmente constatar a sua lucidez. Sem pergunta prévia, e mesmo sem que pensássemos no caso, ele nos falou espontaneamente de uma afecção de que sofremos há algum tempo, cujo termo assinalou. E, coisa notável, esse termo é o mesmo assinalado pela sonâmbula Sra. Roger, que tínhamos consultado sobre o assunto, seis meses antes.

Ele não nos conhecia nem de vista nem de nome, e posto que, na sua ignorância, lhe fosse difícil compreender a natureza dos nossos trabalhos, por meio de circunlóquios, imagens e expressão à sua maneira, ele indicou, sem equívocos, o objetivo, as tendências e os resultados inevitáveis. Este último ponto, sobretudo, parecia interessá-lo vivamente, pois repetia incessantemente que a coisa deveria realizar-se, que a isto estávamos destinado desde o nascimento e que nada se lhe poderia opor. Por sua própria iniciativa, falou da pessoa chamada a continuar a obra após a nossa morte, dos obstáculos que certos indivíduos procuravam lançar em nosso caminho, das rivalidades ciumentas e das ambições pessoais; designou de maneira inequívoca aqueles que utilmente nos poderiam secundar e aqueles dos quais devíamos desconfiar, voltando sempre sobre uns e outros com uma espécie de encarniçamento; por fim entrou em detalhes circunstanciados de perfeita justeza, tanto mais notáveis quanto a maioria deles não eram provocados por qualquer pergunta, e que em todos os pontos coincidiam com as revelações feitas muitas vezes por nossos guias espirituais, para o nosso governo.

Este gênero de pesquisas nada tinha a ver com os hábitos e os conhecimentos desse homem, como ele próprio dizia. Várias vezes ele repetiu: “Digo aqui muitas coisas que não diria a outros, porque eles não me compreenderiam, mas ele (designando-nos) me compreende perfeitamente.” Com efeito, havia coisas propositadamente ditas em meias palavras, só inteligíveis para nós. Vimos no fato uma marca especial da benevolência dos bons Espíritos, que nos quiseram confirmar, por este meio novo e inesperado, as instruções que nos haviam dado em outras circunstâncias, ao mesmo tempo que para nós era assunto de observação e de estudo.

Assim, constatamos que esse homem é dotado de uma faculdade especial e que ele realmente vê. Vê sempre certo? Aí não está a questão. Basta que tenha visto muitas vezes para constatar a existência do fenômeno. A ninguém na Terra é dada a infalibilidade, pela simples razão que aqui ninguém goza da perfeição absoluta. Como vê ele? Eis o ponto essencial que se não pode deduzir senão pela observação.

Em consequência de sua falta de instrução e dos preconceitos do meio em que sempre viveu, ele está imbuído de certas ideias supersticiosas, que mistura com os seus relatos. Assim, por exemplo, ele acredita de boa-fé na influência dos planetas sobre os destinos dos indivíduos, e na dos dias felizes e nefastos. Conforme o que ele tinha visto de nós, deveríamos ter nascido sob não sabemos que signo; deveríamos abster-nos de empreender coisas importantes em certo dia da lua. Não tentamos dissuadi-lo, o que certamente não teríamos conseguido e só teria servido para perturbá-lo. Mas, pelo fato de ter ele algumas ideias falsas, não há motivo para negar a faculdade que possui. Pelo fato de haver grãos ruins num monte de trigo, não significa que não haja trigo bom; e porque um homem nem sempre vê com justeza, não se segue que nada veja.

Quando mais ou menos se deu conta da finalidade e dos resultados de nossos trabalhos, perguntou muito seriamente e com uma espécie de ansiedade ao ouvido do Sr. de W... se por acaso teríamos encontrado o sexto livro de Moisés. Ora, segundo uma tradição popular em certas localidades, Moisés teria escrito um sexto livro, contendo novas revelações e a explicação de tudo o que há de obscuro nos cinco primeiros. Conforme a mesma tradição, o livro deverá ser descoberto um dia. Se alguma coisa deve dar a chave de todas as alegorias das Escrituras é seguramente o Espiritismo, que assim realizaria a ideia ligada ao pretenso sexto livro de Moisés. É muito singular que esse homem haja concebido tal ideia.

Um exame atento dos fatos acima demonstra uma completa analogia entre esta faculdade e o fenômeno designado sob o nome de segunda vista, dupla vista ou sonambulismo desperto, e que é descrito no Livro dos Espíritos, Cap. VIII: Emancipação da alma, e no Livro dos médiuns, Cap. XIV. Ela tem, pois, o seu princípio na propriedade radiante do fluído perispiritual, que permite à alma, em certos casos, perceber as coisas à distância, isto é, na emancipação da alma, que é uma lei da Natureza. Não são os olhos que veem, é a alma que, por seus raios, atingindo um ponto dado, exerce sua ação fora e sem o concurso dos órgãos do corpo. Essa faculdade, muito mais comum do que se pensa, apresenta-se com graus de intensidade e aspectos muito diversos, conforme os indivíduos: nuns ela se manifesta pela percepção permanente ou acidental, mais ou menos clara, das coisas afastadas; noutros, pela simples intuição dessas mesmas coisas; noutros, enfim, pela transmissão do pensamento. É notável que muitos a possuem sem suspeitá-lo, e sobretudo sem se darem conta, pois ela é inerente ao seu ser, e lhes parece tão natural como ver pelos olhos; muitas vezes, mesmo, confundem essas duas percepções. Se se lhes pergunta como veem, a maior parte do tempo não sabem explicar melhor do que explicariam o mecanismo da visão ordinária.

O número de pessoas que espontaneamente gozam dessa faculdade é muito considerável, do que resulta que ela independe de um aparelho qualquer. O copo de que esse homem se serve é um acessório que só lhe é útil por hábito, pois constatamos que em várias circunstâncias ele descrevia as coisas sem o olhar. Pelo que nos concerne, notadamente falando de indivíduos, ele os indicava com o seu giz, por sinais característicos de suas qualidades e de sua posição. Era sobretudo acerca desses sinais que ele falava olhando para a sua mesa, sobre a qual ele parecia ver tão bem quanto no copo, que mal olhava. No entanto, para ele, o copo é necessário e eis como isto pode ser explicado.

A imagem que ele observa se forma nos raios do fluido perispiritual que lhe transmitem a sensação. Concentrando sua atenção no fundo de seu copo, para aí dirige ele os raios fluídicos, e muito naturalmente a imagem aí se concentra, como se concentraria sobre um objeto qualquer: um copo d’água, uma garrafa, uma folha de papel, um mapa ou um ponto vago no espaço. É um meio de fixar o pensamento e de circunscrevê-lo, e estamos convencidos de que quem quer que exerça tal faculdade com auxílio de um objeto material, com um pouco de exercício e com a firme vontade de prescindir dele, veria igualmente bem.

Admitindo-se, contudo, o que ainda não está provado, que o objeto age sobre certas organizações, à maneira de excitantes, de modo a provocar o desprendimento fluídico, e, em consequência, o isolamento do Espírito, há um fato capital adquirido pela experiência: é que não existe nenhuma substância especial que tenha, a tal respeito, uma propriedade exclusiva. O homem em questão só vê num copo vazio, sustido na concha da mão, e não pode ver no primeiro copo que vier, nem em seu copo colocado de outro modo. Se a propriedade fosse inerente à substância e à forma do objeto, por que dois objetos da mesma natureza e da mesma forma não a possuiriam para o mesmo indivíduo? Por que o que tem efeito sobre um não o teria sobre outro? Por que, enfim, tantas pessoas possuem essa faculdade sem auxílio de qualquer aparelho? Como dissemos, é que a faculdade é inerente ao indivíduo e não ao copo. A imagem se forma em si mesmo, ou melhor, nos raios fluídicos que dele emanam. O copo não oferece, por assim dizer, senão o reflexo dessa imagem: é um efeito, e não uma causa. Tal a razão por que nem todos veem no que se convencionou chamar espelhos mágicos. Para isto não basta a visão corporal, mas é necessário ser dotado da faculdade chamada dupla vista, que mais exatamente seria chamada visão espiritual. E isto é tão verdadeiro que certas pessoas veem perfeitamente com os olhos fechados.

A visão espiritual é, na realidade, o sexto sentido ou sentido espiritual, de que tanto se falou e que, como os outros sentidos, pode ser mais ou menos obtuso ou sutil. Ele tem como agente o fluído perispiritual, como a visão física tem por agente o fluído luminoso. Assim como a irradiação do fluído luminoso leva a imagem dos objetos à retina, a irradiação do fluido perispiritual traz à alma certas imagens e certas impressões. Esse fluido, como todos os outros, tem seus efeitos próprios, suas propriedades sui generis.

Sendo o homem composto de Espírito, perispírito e corpo, durante a vida as percepções e sensações se produzem simultaneamente pelos sentidos orgânicos e pelo sentido espiritual; depois da morte, os sentidos orgânicos são destruídos mas, restando o perispírito, o Espírito continua a perceber pelo sentido espiritual, cuja sutileza aumenta em razão do desprendimento da matéria. O homem em quem tal sentido é desenvolvido goza, assim, por antecipação, de uma parte das sensações do Espírito livre. Posto que amortecido pela predominância da matéria, o sentido espiritual não deixa de produzir sobre todas as criaturas uma porção de efeitos reputados maravilhosos, por falta de conhecimento do princípio.

Estando em a Natureza, pois depende da constituição do Espírito, essa faculdade existiu, portanto, em todos os tempos; mas, como todos os efeitos cuja causa é desconhecida, a ignorância o atribuía a causas sobrenaturais. Os que a possuíam em grau eminente e podiam dizer, saber e fazer coisas acima do alcance vulgar, ou eram acusados de pactuar com o diabo, qualificados de feiticeiros e queimados vivos, ou foram beatificados, como tendo o dom dos milagres, quando, na realidade, tudo se reduzia à aplicação de uma lei natural.

Voltemos aos espelhos mágicos. A palavra magia, que outrora significava ciência dos sábios, pelo abuso que dela fizeram a superstição e o charlatanismo, perdeu seu significado primitivo. Está hoje desacreditada com razão e cremos difícil reabilitá-la, por estar, desde então, ligada à ideia das operações cabalísticas, dos grimórios, dos talismãs e de uma porção de práticas supersticiosas condenadas pela razão sadia. Declinando de toda solidariedade com essas pretensas ciências, o Espiritismo deve evitar apropriar-se de termos que pudessem falsear a opinião no que lhe concerne. No caso de que se trata, a qualificação de mágico é tão imprópria quanto seria a de feiticeiros atribuída aos médiuns. A designação desses objetos pelo nome de espelhos espirituais nos parece mais exata, porque ela lembra o princípio em virtude do qual se produzem os efeitos. À nomenclatura espírita, portanto, podese acrescentar as expressões: visão espiritual, sentido espiritual e espelhos espirituais.

Tendo em vista que a natureza, a forma e a substância desses objetos são indiferentes, compreende-se que indivíduos dotados da visão espiritual vejam na borra de café, na clara de ovo, no côncavo das mãos e nas cartas, o que outros veem num copo d’água, e que por vezes digam coisas certas. Para eles, esses objetos e suas combinações não têm qualquer significação; é apenas um meio de fixar a atenção, um pretexto para falar, um suporte, por assim dizer, pois é importante observar que, nesse caso, o indivíduo apenas os olha, no entanto, se não os tivesse diante de si, ele acreditaria faltar-lhe alguma coisa; ficaria desorientado, como o ficaria o nosso homem, se não tivesse o seu copo na mão; teria dificuldade para falar, como certos oradores, que nada sabem dizer se não estiverem em seu lugar habitual, ou se não tiverem na mão um caderno que eles não leem.

Mas se há pessoas sobre as quais esses objetos produzem o efeito dos espelhos espirituais, há também uma quantidade muito grande de criaturas que, não tendo outra faculdade senão a de ver pelos olhos e de possuir a linguagem convencional afeta a esses signos, abusam dos outros e de si mesmas; depois a igualmente numerosa dos charlatões, que exploram a credulidade. Somente a superstição pôde consagrar o uso de tais processos, como meio de adivinhação, e de uma porção de outros que não têm mais valor, atribuindo uma virtude às palavras, uma significação aos sinais materiais, às combinações fortuitas, que não têm qualquer ligação necessária com o objeto da pergunta ou do pensamento.

Dizendo que com a ajuda de tais processos certas pessoas por vezes podem dizer verdades, não é, entretanto, para reabilitá-las na opinião, mas para mostrar que as ideias supersticiosas às vezes têm sua origem num princípio verdadeiro, desnaturado pelo abuso e pela ignorância. Dando a conhecer a lei que rege as relações entre o mundo visível e o mundo invisível, o Espiritismo destrói, por isso mesmo, as ideias falsas que se tinham feito a respeito disso, como a lei da eletricidade destruiu, não o raio, mas as superstições engendradas pela ignorância das verdadeiras causas do raio.

Em resumo, a visão espiritual é um dos atributos do Espírito e constitui uma das percepções do sentido espiritual. É, pois, uma lei da Natureza.

Sendo o homem um Espírito encarnado, possui os atributos de Espírito e, consequentemente, as percepções do sentido espiritual.

No estado de vigília, tais percepções geralmente são vagas, difusas e, por vezes, mesmo, insensíveis e inapreciáveis, porque amortecidas pela atividade preponderante dos sentidos materiais. Não obstante, pode-se dizer que toda percepção extracorpórea é devida à ação do sentido espiritual que, nesse caso, supera a resistência da matéria.

No estado de sonambulismo natural ou magnético, de hipnotismo, de catalepsia, de letargia, de êxtase, e até mesmo no sono ordinário, estando os sentidos corporais momentaneamente entorpecidos, o sentido espiritual se desenvolve com mais liberdade.

Toda causa exterior tendente a entorpecer os sentidos corpóreos provoca, por isto mesmo, a expansão e a atividade do sentido espiritual.

As percepções pelo sentido espiritual não estão isentas de erro, pela razão que o Espírito encarnado pode ser mais ou menos adiantado e, consequentemente, mais ou menos apto a julgar as coisas corretamente e a compreendê-las, e porque ele ainda está sob a influência da matéria.

Uma comparação dará melhor a compreender o que se passa nesta circunstância. Na Terra, aquele que tem a melhor visão pode ser enganado pelas aparências. Por muito tempo o homem acreditou no movimento do sol. Foram-lhe necessárias a experiência e as luzes da Ciência para lhe mostrar que era vítima de uma ilusão. Assim acontece aos Espíritos pouco adiantados, encarnados ou desencarnados; eles ignoram muitas coisas do mundo invisível, como certos homens inteligentes, aliás, ignoram muitas coisas da Terra; a visão espiritual só lhes mostra o que sabem, e não basta para lhes dar os conhecimentos que lhes faltam; daí as aberrações e as excentricidades tão frequentemente notadas nos videntes e nos extáticos, sem contar que a sua ignorância os põe, mais que outros, à mercê dos Espíritos enganadores que exploram a sua credulidade e, mais ainda, o seu orgulho. Eis por que seria imprudente aceitar suas revelações sem controle. Não se deve perder de vista que estamos na Terra, num mundo de expiação, onde abundam os Espíritos inferiores e onde os Espíritos realmente superiores são exceções. Nos mundos adiantados é o contrário que se verifica.

As pessoas dotadas de visão espiritual podem ser consideradas médiuns? Sim e não, conforme as circunstâncias. A mediunidade consiste na intervenção dos Espíritos. O que se faz por si mesmo não é um ato mediúnico. Aquele que possui a visão espiritual vê por seu próprio Espírito e nada implica a necessidade do concurso de um Espírito estranho. Ele não é médium porque vê, mas por suas relações com outros Espíritos. Conforme sua natureza boa ou má, os Espíritos que o assistem podem facilitar ou entravar sua lucidez, fazer-lhe ver coisas justas ou falsas, o que também depende do objetivo a que se propõe e da utilidade que possam apresentar certas revelações. Aqui, como em todos os outros gêneros de mediunidade, as questões fúteis e de curiosidade, as intenções não sérias, os pontos de vista cúpidos e interesseiros, atraem os Espíritos levianos, que se divertem à custa das pessoas muito crédulas e se alegram por mistificá-las. Os Espíritos sérios só intervêm nas coisas sérias, e o vidente melhor dotado pode nada ver se lhe não for permitido responder ao que perguntam, ou ser perturbado por visões ilusórias, a fim de punir os curiosas indiscretos. Posto possua ele sua própria faculdade, e por mais transcendente que ela seja, ele nem sempre tem a liberdade de usá-la à vontade. Muitas vezes os Espíritos dirigem o seu emprego, e se ele dela abusa, será o primeiro punido pela ingerência dos maus Espíritos.

Resta um ponto importante a esclarecer: o da previsão de acontecimentos futuros. Compreende-se a visão das coisas presentes, a visão retrospectiva do passado, mas como pode a visão espiritual dar a certos indivíduos o conhecimento do que ainda não existe? Para não nos repetirmos, remetemos ao nosso artigo de maio de 1864, sobre a teoria da presciência, no qual a questão é tratada de maneira completa. Apenas acrescentamos algumas palavras.

Em princípio, o futuro é oculto ao homem pelos motivos que tantas vezes já foram expostos. Só excepcionalmente ele lhe é revelado, além do mais, ele é mais pressentido do que predito. Para conhecê-lo, Deus não deu ao homem nenhum meio certo. É, pois, em vão que este emprega, para tanto, toda a imensidão de processos inventados pela superstição, e que o charlatanismo explora em seu proveito. Se entre os ledores da sorte, profissionais ou não, alguns por vezes se encontram dotados da visão espiritual, é de notar que eles veem muito mais vezes no passado e no presente do que no futuro. Por isto seria imprudente confiar-se de maneira absoluta nas predições e com base nelas regular sua conduta.

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