Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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(2º Artigo - vide o nº de maio de 1864)

Este é um daqueles livros que não podem ser refutados completamente senão por um outro livro. Teria que ser discutido artigo por artigo. É uma tarefa que não empreenderemos, porque fere questões que não são de nossa alçada, e de que muitos outros se encarregaram. Limitar-nos-emos ao exame das consequências tiradas pelo autor do ponto de vista em que ele se colocou.

Há nessa obra, como em todas as obras históricas, duas partes bem distintas: o relato dos fatos e a apreciação desses fatos. A primeira é uma questão de erudição e de boa-fé; a segunda depende inteiramente da opinião pessoal. Dois homens podem concordar perfeitamente quanto a uma e discordar completamente quanto à outra.

É natural que a parte religiosa tenha sido atacada, pois é uma questão de crença, mas a parte histórica parece não ser invulnerável, se a julgarmos pelas críticas dos teólogos que não só contestam a apreciação, mas a exatidão de certos fatos. Aos mais competentes do que nós deixaremos o cuidado de decidir esta última questão. Contudo, sem nos constituirmos em juiz do debate, reconheceremos que certas críticas evidentemente têm fundamento, mas que sobre vários pontos importantes da história, as observações do Sr. Renan são perfeitamente justas.

Entre as numerosas refutações feitas ao seu livro, cremos dever assinalar a do Pe. Gratry como uma das mais lógicas e mais imparciais. Ele destaca, com muita clareza, as contradições encontradas a cada passo[1].

Admitamos, entretanto, que o Sr. Renan não se tenha em nada afastado da verdade histórica. Isto não implica a justeza de sua apreciação, porque ele fez esse trabalho com base numa opinião e com ideias preconcebidas. Ele estudou os fatos para neles encontrar a prova dessa opinião e não para formar uma opinião. Naturalmente, ele não viu senão o que lhe pareceu conforme à sua maneira de ver, ao passo que não viu o que lhe era contrário. Sua opinião é a sua medida. Aliás, ele mesmo o diz nesta passagem de sua introdução, à página 5: “Ficarei satisfeito se depois de ter escrito a vida de Jesus me for dado contar como entendo a história dos apóstolos; o estado da consciência cristã durante as semanas que se seguiram à morte de Jesus; a formação do ciclo legendário da ressurreição; os primeiros atos da Igreja de Jerusalém; a vida de São Paulo, etc.”

Pode haver diversas maneiras de apreciar um fato, mas o fato em si mesmo é independente da opinião. É, pois, uma história dos apóstolos à sua maneira que o Sr Renan se propõe a escrever, como escreveu, à sua maneira, a história da vida de

Jesus. Acha-se ele nas condições de imparcialidade requeridas para que sua opinião mereça crédito? Que ele nos permita duvidar.

Persuadido de que estava certo, ele pôde agir. Cremos que o fez de boa-fé, e que os erros materiais que lhe censuram não resultam de um desígnio premeditado de alterar a verdade, mas de uma falsa apreciação das coisas. Ele está na posição de um homem consciencioso, partidário exclusivo das ideias do antigo regime, que escrevesse uma história da Revolução Francesa. Seu relato poderá ser de uma escrupulosa exatidão, mas o julgamento que fizer dos homens e das coisas será o reflexo de suas próprias ideias. Ele censurará o que outros aprovarão. Em vão terá ele percorrido os lugares onde se desenrolaram os acontecimentos, pois esses lugares lhe confirmarão os fatos, mas não lhe farão encará-los de outra maneira. Assim se deu com o Sr. Renan. Percorrendo a Judeia com o Evangelho na mão, ele encontrou os traços do Cristo, de onde concluiu que o Cristo tinha existido, mas não viu o Cristo de maneira diferente da que o via antes. Onde ele não viu senão os passos de um homem, um apóstolo da fé ortodoxa teria percebido o rastro da Divindade.

Sua apreciação vem do ponto de vista em que se colocou. Ele nega o ateísmo e o materialismo porque não crê que a matéria pense, e porque admite um princípio inteligente, universal, atribuído a cada indivíduo em dose mais ou menos forte. Em que se torna tal princípio inteligente após a morte de cada indivíduo? A crer na dedicatória do Sr. Renan à alma de sua irmã, ele conserva a sua individualidade e as suas afeições. Mas, se a alma conserva sua individualidade e as suas afeições, há, então, um mundo invisível, inteligente e amante. Ora, considerando-se que esse mundo é inteligente, ele não pode ficar inativo; deve representar um papel qualquer no Universo. Pois bem! A obra inteira é a negação desse mundo invisível e de toda a inteligência ativa fora do mundo visível. Consequentemente, também é a negação de todo fenômeno resultante da ação de inteligências ocultas e de toda relação entre os mortos e os vivos, de onde se deve concluir que sua tocante dedicatória é uma obra da imaginação, suscitada pelo pesar sincero que sente pela perda de sua irmã e que aí exprime mais o seu desejo do que a sua crença, porque se ele tivesse acreditado seriamente na existência individual da alma da irmã; na persistência de sua afeição por ele; na sua solicitude e na sua inspiração, essa crença lhe teria dado ideias mais verdadeiras sobre o sentido da maior parte das palavras do Cristo.

O Cristo, com efeito, preocupando-se com o futuro da alma, incessantemente faz alusão à vida futura, ao mundo invisível, que ele apresenta, consequentemente, como muito mais invejável que o mundo material, e como devendo constituir o objetivo de todas as aspirações do homem.

Para quem nada vê fora da Humanidade tangível, estas palavras: “Meu reino não é deste mundo; Há muitas moradas na casa de meu Pai; Não busqueis os tesouros da Terra, mas os do Céu; Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados”, e tantas outras, devem ter apenas um sentido quimérico. É assim que as considera o Sr. Renan, quando diz que “A parte de verdade contida no pensamento de Jesus o tinha arrastado à quimera que o obscurecia. Contudo, não desprezemos essa quimera que foi a casca grosseira do bulbo sagrado do qual vivemos. Esse fantástico reino do céu, essa busca intérmina de uma cidade de Deus que sempre preocupou o Cristianismo na sua longa carreira, foi o princípio do grande instinto do futuro, que animou todos os reformadores, discípulos obstinados do Apocalipse, desde Joaquim de Flore até o sectário protestante de nossos dias.” (Cap. XVIII, pág. 285, 1ª edição)[2]

A obra do Cristo era toda espiritual. Ora, desde que o Sr. Renan não crê na espiritualização do ser, nem num mundo espiritual, naturalmente deveria tomar o avesso de suas palavras e julgá-lo do ponto de vista exclusivamente material.

Julgando uma obra espiritual, um materialista ou um panteísta é como um surdo julgando uma peça de música. Julgando o Cristo do ponto de vista em que se colocou, o Sr. Renan deve ter-se enganado quanto às suas intenções e ao seu caráter. A mais evidente prova disto se encontra nesta estranha passagem de seu livro (Cap. VII, pg. 128): “Jesus não é um espiritualista, porque tudo para ele conduz a uma realização palpável. Ele não tem a menor noção de uma alma separada do corpo, mas é um idealista completo, pois para ele a matéria não passa de manifestação da ideia e o real não passa de expressão viva do que não se vê.”

Concebe-se o Cristo, fundador da doutrina espiritualista por excelência, não acreditando na individualidade da alma, da qual não tem a menor noção e, por consequência, não crendo na vida futura? Se ele não é espiritualista, é materialista e, consequentemente, o Sr. Renan é mais espiritualista do que ele. Tais palavras não se discutem. Elas bastam para indicar o alcance do livro, porque provam que o autor leu os Evangelhos com muita leviandade ou com o espírito tão prevenido que não viu o que salta aos olhos de todo mundo. Pode admitir-se a sua boa-fé, mas não se admitirá, por certo, a justeza de sua visão.

Todas as suas apreciações decorrem da ideia de que o Cristo só tinha em vista as coisas terrestres. Segundo ele, era um homem essencialmente bom, desinteressado dos bens deste mundo, de costumes muito suaves, de uma instrução limitada ao estudo dos textos sagrados, de uma inteligência natural superior, a quem as disputas religiosas dos judeus deram a ideia de fundar uma doutrina. Nisto ele foi favorecido pelas circunstâncias, que soube explorar habilmente. Sem ideia preconcebida e sem plano prévio, vendo que não teria êxito junto aos ricos, procurou seu ponto de apoio nos proletários, naturalmente revoltados contra os ricos. Adulando-os, deveria transformá-los em seus amigos. Se ele disse que o reino dos céus é para as crianças, foi para agradar às mães, que tomava por seu lado fraco, e transformá-las em partidárias. Assim, a religião nascente foi, sob muitos aspectos, um movimento de mulheres e de crianças. Numa palavra, nele tudo era cálculo e combinação, e, ajudado pelo amor ao maravilhoso, ele triunfou. Aliás, não muito austero, porque amou muito Madalena, pela qual foi amado. Várias mulheres ricas proviam às suas necessidades. Ele e os apóstolos eram folgazões que não desdenhavam as boas mesas. Vede o que ele diz:

“Três ou quatro galileias dedicadas acompanhavam sempre o jovem mestre e disputavam o prazer de escutá-lo e dele cuidar, cada uma por sua vez. Elas traziam para a seita nova um elemento de entusiasmo e de maravilhoso, cuja importância já se apreende. Uma delas, Maria de Magdala, que celebrizou no mundo o nome de sua pobre aldeia, parece ter sido uma criatura muito exaltada. Segundo a linguagem da época, tinha sido possessa de sete demônios, isto é, tinha sido afetada de doenças nervosas e aparentemente inexplicáveis. Por sua beleza pura e suave, Jesus acalmou essa organização perturbada. A Madalena lhe foi fiel até ao Gólgota e, no dia seguinte à sua morte, representou um papel de primeira ordem, porque foi o principal instrumento pelo qual se estabeleceu a fé na ressurreição, como veremos adiante. Joana, mulher de Cusa, um dos intendentes de Antipas, Suzana e outras, que ficaram desconhecidas, o seguiam sem cessar e o serviam. Algumas eram ricas e punham, por sua fortuna, o jovem profeta em posição de viver sem exercer o ofício que tinha exercido até então.” (Cap. IX, pág. 151).

“Jesus compreendeu bem depressa que o mundo oficial de seu tempo absolutamente não se prestaria para o seu reino. Ele tomou seu partido com extrema ousadia. Deixando de lado toda essa gente de coração seco e de estreitos preconceitos, voltou-se para os simples. O reino de Deus é feito para as crianças e para os que se lhes assemelham; para os desprezados deste mundo, vítimas da arrogância social que repele o homem bom, mas humilde... O puro ebionismo, significando que somente os pobres (ebionin) serão salvos; que o reino dos pobres vai chegar, foi, portanto, a doutrina de Jesus.” (Cap. XI, pág. 178).

“Ele não apreciava os estados da alma senão em proporção ao amor que a eles se agrega. Mulheres com o coração cheio de lágrimas e dispostas por suas faltas aos sentimentos de humildade estavam mais perto de seu reino que as de natureza medíocre, as quais muitas vezes têm pouco mérito por não terem falido. Por outro lado, concebe-se que essas almas ternas, achando em sua conversão à seita um meio fácil de reabilitação, a ele se ligavam com paixão.”

“Longe de buscar atenuar os murmúrios levantados por seu desdém às suscetibilidades sociais do tempo, ele parecia ter prazer em excitá-los. Jamais foi confessado mais alto esse desprezo pelo mundo, que é a condição das grandes coisas e da grande originalidade. Ele só perdoava o rico quando esse rico, por força de algum preconceito, era malvisto pela Sociedade. Ele preferia abertamente a gente de vida equivocada e pouca consideração dedicava aos notáveis ortodoxos. Ele lhes dizia: ‘Publicanos e cortesãs vos precederão no reino de Deus. João veio; publicanos e cortesãs creram nele e malgrado isto vós não vos convertestes.’ Compreende-se que a censura por não terem seguido o bom exemplo que lhes davam as filhas do prazer deveria ser terrível para criaturas que faziam profissão de gravidade e de uma moral rígida.

“Ele não tinha qualquer afetação exterior nem mostra de austeridade. Não fugia à alegria, pois ia de boa vontade às festas de casamento. Um de seus milagres foi feito para alegrar umas bodas de vilarejo. As bodas no Oriente se dão à noite. Cada um leva uma lâmpada; as luzes que vão e vêm têm um efeito muito agradável. Jesus gostava desse aspecto alegre e animado e daí tirava as suas parábolas.” (Cap. XI, pág. 187).

“Os Fariseus e os doutores gritavam com o escândalo: ‘Vede com que gente ele come!’ Jesus tinha, então, finas respostas, que exasperavam os hipócritas: ‘Não são os que estão com saúde que precisam de médico.’” (Cap. XI, pág. 185).

O Sr. Renan tem o cuidado de indicar, em notas de referência, as passagens do Evangelho a que faz alusão, para mostrar que se apoia nos textos. Não é a verdade das citações que se lhe contesta, mas a interpretação que ele lhes dá. É assim que a profunda máxima deste último parágrafo é deformada numa simples tirada espirituosa. Tudo se materializa no pensamento do Sr. Renan; em todas as palavras de Jesus ele nada vê além do terra a terra, porque ele próprio nada vê além da vida material.

Depois de uma descrição idílica da Galileia, do seu clima delicioso, de sua fertilidade luxuriante, do caráter doce e hospitaleiro de seus habitantes, dos quais faz verdadeiros pastores da Arcádia, ele acha, na disposição de espírito que daí devia resultar, a fonte do Cristianismo.

“Essa vida alegre e facilmente satisfeita não levava ao grosso materialismo do nosso camponês; à grande alegria de uma normanda generosa; à pesada alegria dos flamengos. Ela se espiritualizava em sonhos etéreos, numa espécie de misticismo poético, confundindo o Céu e a Terra... A alegria fará parte do reino de Deus. Não é a filha dos humildes de coração, dos homens de boa vontade?

“Toda a história do Cristianismo nascente tornou-se, assim, uma deliciosa pastoral. Um Messias em repasto de bodas; a cortesã e o bom Zaqueu chamados a seus festins; os fundadores do reino do Céu, como um cortejo de paraninfos: eis o que a Galileia ousou e fez aceitar.” (Cap. IV, pág. 67).

“Um sentimento de admirável profundidade em tudo isto dominou Jesus, bem como o bando de garotos alegres que o acompanhavam, e dele fez para a eternidade o verdadeiro criador da paz da alma, o grande consolador da vida.” (Cap. X, pág. 176).

“Utopias de vida bem-aventurada fundadas na fraternidade dos homens e o culto puro do verdadeiro Deus preocupavam as almas elevadas e produziam de todos os lados ensaios ousados, sinceros, mas de pouco futuro.” (Cap. X, pág. 172).

“No Oriente, a casa onde desce um estrangeiro torna-se imediatamente um lugar público. Toda a aldeia aí se reúne. As crianças a invadem, os criados as afastam, mas elas sempre voltam. Jesus não suportava que maltratassem esses ingênuos ouvintes; aproximava-os de si e os abraçava. As mães, encorajadas por tal acolhida, lhe traziam seus bebês para que ele os tocasse... Assim as mulheres e as crianças o adoravam...

“A religião nascente foi, assim, sob vários aspectos, um movimento de mulheres e de crianças. Estas últimas faziam em seu redor como que uma jovem guarda para a inauguração de sua inocente realeza, e lhe faziam pequenas ovações, com as quais ele muito se alegrava, chamando-o filho de David, gritando Hosanna e agitando palmas em seu redor. Jesus, como Savanarola, talvez as fizesse servir de instrumento a missões piedosas. Ele estava muito à vontade para ver esses jovens apóstolos, que não o comprometiam, lançando-se à frente e lhe conferindo títulos que ele próprio não ousava tomar.” (Cap. XI, pág. 190).

Assim, Jesus é apresentado como um ambicioso vulgar, de paixões mesquinhas, que age sorrateiramente e não tem coragem de se expor. Na falta de uma realeza efetiva, ele se contenta com a mais inocente e menos perigosa que lhe conferem as crianças.

A seguinte passagem faz dele um egoísta:

“Mas de tudo isto não resultou uma Igreja estabelecida em Jerusalém, nem um grupo de discípulos hierosolimitas. O encantador doutor, que perdoava a todos, desde que o amassem, não podia achar muito eco nesse santuário de vãs disputas e de sacrifícios inveterados.”

“Sua família parece não tê-lo amado, e, por momentos, o vemos duro para com ela. Como todos os homens exclusivamente preocupados com uma ideia, Jesus chegava a ter em pouca conta os laços de sangue... Depois, em sua ousada revolta contra a Natureza, ele devia ir ainda mais longe, e o veremos calcando aos pés tudo quanto é do homem: o sangue, o amor, a pátria, não conservar de alma e de coração senão a ideia que a ele se apresentava como a forma absoluta do bem e do verdadeiro.” (Cap. III, pág. 42, 43).

Eis o que o Sr. Renan intitula Origens ao Cristianismo. Quem jamais teria acreditado que um bando de gozadores, uma multidão de mulheres, de cortesãs e de crianças, tendo à frente um idealista que não tinha a menor noção da alma, pudessem, auxiliados por uma utopia, a quimera de um reino celeste, mudar a face do mundo religioso, social e político?

Em outro artigo examinaremos a maneira pela qual ele encara os milagres e a natureza da pessoa do Cristo.



[1] Brochura in-18. ─ Preço 1 franco. Plon, Rua Guarancière, 8.


[2] Todas as nossas citações são tiradas da 1ª edição.


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