Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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Espiritismo retrospectivo

A mediunidade pelo copo D'Água em 1706

(Em casa do Duque de Orleans)

Podem compreender-se sob o título geral de Espiritismo Retrospectivo os pensamentos, as doutrinas, as crenças e todos os fatos espíritas anteriores ao Espiritismo Moderno, isto é, até 1850, data na qual começaram as observações e os estudos sobre esses tipos de fenômenos. Não foi senão em 1857 que tais observações foram coordenadas em corpo de doutrina metódica e filosófica. Esta divisão nos parece útil à história do Espiritismo.

O fato seguinte é relatado nas Memórias do Duque de Saint-Simon[1]:

“Lembro-me também de uma coisa que ele (o Duque de Orléans) me contou no salão de Marly, por ocasião de sua partida para a Itália, cuja singularidade, verificada pelo acontecimento, me leva a não omiti-lo. Ele era curioso por todas as sortes de artes e ciências, e, com muitíssimo espírito, tinha tido toda a sua vida a fraqueza, tão comum na corte dos filhos de Henrique II, que Catarina de Médicis tinha, entre outros males, trazido da Itália. Tanto quanto era possível, ele tinha procurado ver o diabo, sem ter conseguido, conforme me disse muitas vezes, e ver coisas extraordinárias e saber o futuro. A Sery tinha em casa uma filha de oito a nove anos, que ali havia nascido e dali nunca havia saído, e que tinha a ignorância e a simplicidade dessa idade e dessa educação. Entre outros velhacos envolvidos com curiosidades ocultas, dos quais o Sr. Duque de Orléans tinha visto muitos em sua vida, apresentaram-lhe um que pretendia fazer ver, num copo cheio d’água, tudo quanto se quisesse saber. Ele pediu alguém jovem e inocente para aí olhar, e essa pequena foi considerada indicada para tanto. Então eles se divertiram em querer saber o que se passava nessa mesma ocasião em lugares distantes, e a pequena via e descrevia o que estava vendo. Aquele homem pronunciava alguma coisa baixinho sobre o copo cheio d’água e logo ali observavam com sucesso.

“Os embustes de que tantas vezes tinha sido vítima o Sr. Duque de Orléans levaram-no a uma prova que pudesse dar-lhe certeza. Ordenou baixinho, ao ouvido de um de seus servidores, que fosse imediatamente à casa da Sra. de Nancré; que verificasse quem ali estava, o que faziam, a posição e o mobiliário da sala e a situação de tudo quanto ali se passava, e sem perder um instante nem falar a ninguém, vir dizer-lhe ao ouvido. Num relance a missão foi executada, sem que ninguém se apercebesse de que se tratava; e a menina, sempre na sala. Quando o Sr. Duque de Orléans foi informado, ele pediu à menina que visse quem estava em casa da Sra. de Nancré e o que ali se passava. Logo ela lhe contou, palavra por palavra, tudo o que tinha visto o enviado do Sr. Duque de Orléans, a descrição do rosto, da aparência, das roupas, das pessoas que ali estavam, sua situação na sala, as pessoas que jogavam em duas mesas diferentes, as que olhavam ou conversavam sentadas ou de pé, a disposição dos móveis, numa palavra, tudo. Na mesma hora o Sr. Duque de Orléans determinou que Nancré fosse lá, e ele relatou ter encontrado tudo como a menina havia dito, e como o valete que lá tinha estado havia contado ao ouvido do Sr. Duque de Orléans.

“Ele me falava pouco dessas coisas, porque eu tomava a liberdade de embaraçá-lo. Tomei a liberdade de injuriá-lo, neste caso, e de dizer-lhe que eu julgava poder demovê-lo da crença nesses sortilégios, numa ocasião, sobretudo, em que ele devia ter o espírito ocupado com tantas grandes coisas. ‘Isto não é tudo, disse-me ele: não vos contei isto senão para chegar ao resto.’ Em seguida contou-me que, encorajado pela exatidão do que a menina havia visto na sala da Sra. Nancré, ele quis ver algo de mais importante, e o que se passaria com a morte do rei, mas sem indagar a data, que não se podia ver no copo. Então ele fez essa pergunta à menina, que jamais tinha ouvido falar de Versalhes, nem tinha visto ninguém da corte senão ele. Ela olhou e lhe explicou demoradamente tudo o que via. Fez com exatidão a descrição do quarto do rei em Versalhes, e do mobiliário que, com efeito, aí se achava por ocasião de sua morte. Ela o descreveu perfeitamente em seu leito, e disse que estava de pé junto ao leito, ou no quarto, um menino bem comportado, seguro pela Sra. de Ventadour, com o que gritou, porque a tinha visto em casa da senhorita Sery. Ela lhes fez conhecer a Sra. de Maintenon, o rosto singular de Fayon, a Sra. Duquesa de Orléans, a senhora duquesa e a Sra. Princesa de Conti; gritou ao Sr. Duque de Orléans; numa palavra, deu-lhe a conhecer o que lá havia de príncipes, de senhores, de criados e de valetes. Quando acabou de dizer tudo, o Sr. Duque de Orléans, surpreso porque não lhe tinha referido Monsenhor, o Sr. Duque de Bourgonha, o Sr. Duque de Berry, lhe perguntou se não via pessoas com tais e tais feições. Ela respondeu com firmeza que não, e repetiu aquelas que ela via. Era o que o Sr. Duque de Orléans não podia compreender e de que se admirou muito comigo, em vão procurando a razão.

“A cerimônia de exaltação o explicou. Estávamos, então, em 1706. Os quatro estavam então cheios de vida e de saúde, e os quatro tinham morrido antes do rei. A mesma coisa aconteceu com o Sr. Príncipe, com o Sr. Duque e com o Sr. Príncipe de Conti, que ela não viu, enquanto viu os filhos dos dois últimos, o Sr. de Maine, os seus, e o Sr. Conde de Toulouse. Mas até a exaltação, isto ficou na obscuridade. Terminada esta curiosidade, o Sr. Duque de Orléans quis saber o que aconteceria consigo. Então não foi mais no copo d’água. O homem que lá estava se ofereceu para lhe mostrar, como se pintado na parede da sala, desde que ele não tivesse medo de ver. E ao cabo de um quarto de hora, de algumas afetações diante de todos, a figura do Sr. Duque de Orléans, vestido como estava então e em tamanho natural, apareceu de repente na parede, como em pintura, com uma coroa na cabeça. Ela não era da França, nem da Espanha, nem da Inglaterra, nem imperial; o Sr. Duque de Orléans, que a considerou de olhos arregalados, jamais pôde adivinhá-la, e jamais tinha visto uma semelhante; ela tinha apenas quatro círculos e nada no topo. Essa coroa lhe cobria a cabeça.

“Da obscuridade precedente e desta, aproveitei a ocasião para lhe censurar a vaidade dessas espécies de curiosidades, os justos enganos do diabo, que Deus permite para castigar as curiosidades que ele proíbe, o nada e as trevas que daí resultam em vez da luz e da satisfação que nelas se buscam. Ele seguramente estava bem longe de ser regente do reino, e de imaginá-lo. Talvez fosse o que lhe anunciava essa coroa singular. Tudo isto se havia passado em Paris, em casa de sua amante, em presença de sua mais estreita intimidade, na véspera do dia em que ele me contou, e eu o achei tão extraordinário que aqui lhe dei lugar, não para aprová-lo, mas para fazer o registro.”

A credibilidade do Duque de Saint-Simon é tanto menos suspeita pelo fato de ele se opor a essa espécie de ideias; não se pode, pois, duvidar que tenha registrado fielmente o relato do Duque de Orléans. Quanto ao fato em si mesmo, não é provável que o Duque o tivesse inventado à toa. Os fenômenos que se produzem em nossos dias, aliás, provam a sua possibilidade; o que, então, passava por algo de maravilhoso, é agora um fato muito natural. Certamente não se pode levar à conta da imaginação da menina, que aliás, sendo desconhecida do indivíduo, não lhe podia servir de comparsa. As palavras pronunciadas sobre o copo d’água sem dúvida não tinham outro objetivo senão dar ao fenômeno uma aparência misteriosa e cabalística, segundo as crenças da época; mas podiam muito bem exercer uma ação magnética inconsciente, e isto com tanto mais razão porque aquele homem parecia dotado de uma vontade enérgica. Quanto ao fato do quadro que ele fez aparecer na parede, até o presente não se lhe pode dar qualquer explicação. Ademais, a magnetização prévia da água não parece ser indispensável.

Um dos nossos correspondentes da Espanha citava-nos, há alguns dias, o seguinte fato, que se havia passado sob suas vistas, há uns quinze anos, numa época e numa região onde o Espiritismo era desconhecido e quando ele mesmo levava a incredulidade até os últimos limites. Em sua família tinham ouvido falar da faculdade que têm certas pessoas de ver numa garrafa de cristal cheia d’água, e a isso não ligavam mais importância do que nas crendices populares. Não obstante, quiseram experimentar, por curiosidade. Uma moça, após um instante de concentração, viu um parente dele, do qual fez o retrato exato; ela o viu numa montanha, a algumas léguas dali, onde não podiam supor que ele estivesse, depois descer num despenhadeiro, voltar, fazer diversas idas e vindas. Quando o indivíduo regressou e lhe disseram de onde vinha e o que tinha feito, ele ficou muito surpreso, pois não havia comunicado a ninguém a sua intenção. Aqui a imaginação está completamente fora de causa, porque o pensamento de nenhum dos assistentes poderia agir sobre o espírito da moça.

Sendo a influência da imaginação a grande objeção que opõem a esse gênero de fenômenos, como a todos os da mediunidade em geral, seria preciso colher com o maior cuidado os casos em que é demonstrado que essa influência não se pode dar. O fato seguinte é um exemplo não menos concludente.

Um outro de nossos assinantes, de Palermo, na Sicília, esteve ultimamente em Paris; em sua ausência, a filha, que jamais veio a Paris, recebeu o número da Revista onde se trata do copo d’água; ela quis tentar ver seu pai. Não o viu, mas viu várias ruas que, pela descrição que fez ao lhe escrever, ele facilmente reconheceu como sendo as ruas de la Paix, Castiglione e Rivoli. Ora, essas ruas eram precisamente aquelas por onde ele havia passado no mesmo dia em que a experiência foi feita. Assim, aquela jovem senhora não vê o pai, que ela conhece, que deseja ver, no qual tem o pensamento concentrado, ao passo que vê o caminho por ele percorrido, que ela não conhecia. Que razão dar a essa originalidade? Os Espíritos nos disseram que as coisas se haviam passado dessa maneira para dar uma prova irrecusável de que em nada a imaginação havia entrado no caso.

Pelas reflexões que seguem, completaremos o que dissemos sobre o mesmo assunto no número de junho.

Tanto o copo quanto a garrafa de cristal, com ou sem água, evidentemente representam, neste fenômeno, o papel de agentes hipnóticos; a concentração da visão e do pensamento em um ponto provocam um maior ou menor desprendimento da alma e, por conseguinte, o desenvolvimento da visão psíquica. (Vide a Revista de janeiro de 1860 ─ Detalhes sobre o hipnotismo).

Esse gênero de mediunidade pode dar lugar a modos especiais de manifestações, a percepções novas; é um meio a mais de constatar a existência e a independência da alma, e, por isto mesmo, um assunto de estudo muito interessante; mas, como dissemos, seria um erro pensar que aí esteja um meio melhor que outro de saber tudo quanto se deseja, porque há coisas que nos devem ficar ocultas, ou que não podem ser reveladas senão em seu devido tempo. Quando chegar o momento de conhecê-las, seremos informados por uma das mil maneiras de que dispõem os Espíritos, quer sejamos, quer não sejamos espíritas. Mas o copo d’água não é mais eficaz do que outra. Pelo fato de se haverem dele servido os Espíritos para dar indicações salutares para as doenças, não se segue que seja um processo infalível para triunfar de todos os males, mesmo dos que não devem ser curados. Se uma cura é possível pelos Espíritos, estes dão seu conselho por um meio qualquer e por qualquer médium apto para esse gênero de comunicação. A eficácia está na prescrição, e não na maneira segundo a qual ela é dada.

O copo d’água também não é uma garantia contra a interferência dos maus Espíritos; a experiência já provou que os Espíritos mal-intencionados se servem desse meio como de outros para induzir em erro e abusar da credulidade. Em que seria possível opor-lhes um obstáculo mais poderoso? Temo-lo dito muitas vezes, e nunca seria demais repeti-lo: Não há mediunidade ao abrigo dos maus Espíritos, e não existe nenhum processo material para afastá-los. O melhor, o único preservativo está em si próprio; é por sua própria depuração que os afastamos, como pela limpeza do corpo nos preservamos contra insetos nocivos.



[1] Vide o número de junho de 1868 da Revista Espírita.



A reencarnação no Japão



São Francisco-Xavier e o Bonzo Japonês



O relato seguinte é extraído da história de São Francisco Xavier pelo Pe. Bouhours. É uma discussão teológica entre um bonzo japonês chamado Tucarondono e São Francisco Xavier, então missionário no Japão.

“─ Não sei se me conheces, ou melhor, se me reconheces, disse Tucarondono a São Francisco Xavier.

“─ Não me lembro de jamais tê-lo visto, respondeu-lhe este.

“Então o bonzo, rebentando de riso e se voltando para outros bonzos, seus confrades, que ele tinha trazido consigo, lhes disse:

“─ Bem vejo que não teria dificuldade em vencer um homem que tratou comigo mais de cem vezes, e que finge jamais me ter visto.

“Em seguida, olhando Xavier com um sorriso de desprezo, continuou:

“─ Nada te resta das mercadorias que me vendeste no porto de Frénasoma?

“─ Na verdade, replicou Xavier com uma expressão sempre serena e modesta, em minha vida não fui negociante e jamais estive em Frénasoma.

“─ Ah! Que esquecimento e que tolice! replicou o bonzo, fazendo-se de admirado e continuando suas risadas: O que! É possível que tenhas esquecido isto?

“─ Avivai-me a memória, prosseguiu docemente o Pai, vós que tendes mais memória e mais espírito que eu.

“─ Bem que eu quero, disse o bonzo, todo orgulhoso do elogio que Xavier lhe havia feito. Hoje faz exatamente mil e quinhentos anos que tu e eu, que éramos negociantes, fazíamos o nosso comércio em Frénasoma e que te comprei cem peças de seda muito barato. Lembras-te agora?

“O santo, que avaliou até onde iria a conversa do bonzo perguntou-lhe, honestamente, que idade tinha ele.

“─ Tenho cinquenta e dois anos, disse Tucarondono.

“─ Como é possível, redarguiu Xavier, que fôsseis negociante há quinze séculos, se não há senão meio século que estais no mundo, e que negociássemos naquele tempo, vós e eu, em Frénasoma, se a maioria entre vós outros bonzos ensinais que o Japão não passava de um deserto há mil e quinhentos anos?

“─ Escuta-me, disse o bonzo; tu ouvirás os oráculos e concordarás que temos mais conhecimento das coisas passadas do que vós outros o tendes das coisas presentes.

“─ Deves, pois, saber que o mundo jamais teve começo, e que as almas, a bem dizer, não morrem. A alma se desprende do corpo onde estava encerrada; ela busca um outro, novo e vigoroso, onde renascemos, ora com o sexo mais nobre, ora com o sexo imperfeito, conforme as diversas constelações do céu e os diferentes aspectos da lua. Essas mudanças de nascimento fazem que também mude a nossa sorte. Ora, é a recompensa dos que viveram santamente ter a lembrança fresca de todas as vidas que levaram nos séculos passados e de representar-se em si mesmo todo inteiro, tal qual foi há uma eternidade, sob a forma de príncipe, de negociante, de homem de letras, de guerreiro e sob outras aparências. Ao contrário, alguém como tu que sabe tão pouco de seus negócios, que ignora o que foi e o que fez no curso de uma infinidade de séculos, mostra que seus crimes o tomaram digno da morte tantas vezes que ele perdeu a lembrança das vidas que mudou.”

OBSERVAÇÃO: Não se pode supor que Francisco Xavier tivesse inventado esta história, que não lhe era favorável, nem suspeitar a boa-fé do seu historiador, o Pe. Bouhours. Por outro lado, não é menos certo que era uma armadilha preparada ao missionário pelo bonzo, pois sabemos que a lembrança das vidas anteriores é um caso excepcional e que, em todo caso, jamais comporta detalhes tão precisos. Mas o que ressalta deste fato é que a doutrina da reencarnação existia no Japão naquela época, em condições idênticas, salvo a intervenção das constelações e da Lua, as que são ensinadas em nossos dias pelos Espíritos. Uma outra similitude não menos notável é a ideia que a precisão da lembrança é um sinal de superioridade. Os Espíritos nos dizem, com efeito, que nos mundos superiores à Terra, onde o corpo é menos material e a alma está num estado normal de desprendimento, a lembrança do passado é uma faculdade comum a todos; aí eles se lembram das existências anteriores, como nos lembramos dos primeiros anos de nossa infância. É bem evidente que os japoneses não estão neste grau de desmaterialização, que não existe na Terra, mas esse fato prova que eles têm a sua intuição.

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