Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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Os Espíritos sempre nos disseram que a separação da alma e do corpo não se dá instantaneamente. Algumas vezes começa antes da morte real, durante a agonia. Quando se faz notar a última pulsação, o desprendimento ainda não é completo. Ele se opera mais ou menos lentamente, conforme as circunstâncias e até sua completa libertação a alma experimenta uma perturbação, uma confusão que lhe não permitem dar-se conta de sua situação. Ela se encontra no estado de uma pessoa que desperta e cujas ideias são confusas.

Tal estado nada tem de penoso para o homem cuja consciência é pura; sem compreender bem o que vê, está calmo e espera sem temor o completo despertar. Ao contrário, é cheio de angústias e de terrores para aquele que teme o futuro.

A duração dessa perturbação, dizemos nós, é variável. É muito menos longa naquele que durante a vida já elevou seus pensamentos e purificou sua alma; dois ou três dias lhe bastam, enquanto que a outros são precisos, por vezes, oito ou mais dias. Muitas vezes assistimos a esse momento solene e sempre vimos a mesma coisa. Não é, pois, uma teoria, mas o resultado da observação, pois é o Espírito que descreve e pinta a sua própria situação.

Eis um exemplo bem característico e muito interessante para o observador, por não tratar-se de um Espírito invisível que escreve por intermédio de um médium, mas de um Espírito que é visto e ouvido junto ao seu corpo, tanto na câmara ardente quanto na igreja, durante o serviço fúnebre.

O Sr. X... acabava de ser vitimado por um ataque de apoplexia. Algumas horas depois de sua morte, o Sr. Adrien, um de seus amigos, achava-se na câmara mortuária, com a esposa do defunto. Ele viu distintamente o Espírito andar em todas as direções; olhar alternativamente para o seu corpo e para as pessoas presentes e depois sentar-se numa poltrona. Tinha exatamente a mesma aparência de quando vivo. Vestia-se do mesmo jeito: sobrecasaca preta e calças pretas. Estava com as mãos nos bolsos e parecia desconfiado.

Durante esse tempo a esposa procurava um papel na escrivaninha. O marido olhou-a e disse: “Procurarás em vão; nada encontrarás.” Ela nada suspeitava, porque o Sr. X. só era visível para o Sr. Adrien.

No dia seguinte, durante o serviço fúnebre, o Sr. Adrien viu novamente o Espírito de seu amigo vagando ao lado do caixão, mas já não tinha a roupa da véspera: estava envolto numa espécie de túnica. Entre ambos travou-se a seguinte conversa. Notemos, de passagem, que o Sr. Adrien não é sonâmbulo; que nesse momento, como no dia anterior, estava perfeitamente desperto e que o Espírito lhe aparecia como se fora um convidado para o enterro.

─ Diga-me uma coisa, meu caro Espírito: o que sentes agora?

─ Conforto e sofrimento.

─ Não compreendo isto.

─ Sinto que estou vivendo a minha verdadeira vida, entretanto, vejo o meu corpo aqui neste caixão; apalpo-me e não me sinto, contudo sinto que vivo, que existo. Serei então dois seres? Ah! Deixe-me sair desta noite, deste pesadelo.

─ Deverás ficar muito tempo assim?

─ Oh! Não. Graças a Deus, meu amigo, sinto que despertarei em breve. Seria horrível se assim não fosse. Tenho as ideias confusas; tudo é obscuridade; penso na grande divisão que acaba de ser feita... e da qual nada compreendo.

Que efeito lhe produziu a morte?

─ A morte? Eu não estou morto, meu filho! Você se engana. Eu me levantava e de repente fui atingido por uma escuridão que me desceu sobre os olhos; depois me levantei e imagine o meu espanto ao me ver, ao me sentir vivo e ter ao meu lado, sobre o ladrilho, meu outro ego deitado. Minhas ideias estavam confusas. Eu tentava me recompor, mas não conseguia. Vi minha mulher chegar e velar-me, lamentandose, mas eu me perguntava o motivo. Eu a consolava, falava-lhe, mas ela nem me respondia nem me compreendia. É isto que me torturava e deixava meu espírito mais perturbado. Só você me fez bem, porque me escutou e compreende o que eu quero. Você me ajuda a destrinçar minhas ideias e me faz um grande bem. Mas por que os outros não fazem o mesmo? Eis o que me tortura... O cérebro está esmagado por esta dor... Irei vê-la. Talvez agora ela me entenda... Até logo, meu caro amigo. Me chame, que e eu irei vê-lo... Farei uma visita de amigo... Surpreendê-lo-ei... Até logo.

A seguir o Sr. Adrien o viu aproximar-se do filho que chorava. Curvou-se sobre ele, ficou uns momentos nessa posição, depois partiu rapidamente. Não havia sido entendido, mas sem dúvida imaginava ter produzido um som. “Eu estou persuadido, diz o Sr. Adrien, de que o que ele dizia chegava ao coração do filho. Eu vos provarei isso. Eu o vi depois, e ele estava mais calmo.”

OBSERVAÇÃO: Este relato está de acordo com tudo quanto havíamos observado sobre o fenômeno da separação da alma; confirma, em circunstâncias muito especiais, esta verdade: após a morte, o Espírito ainda está presente. Acreditamos ter diante de nós apenas um corpo inerte, ao passo que ele vê e entende tudo quanto se passa ao seu redor; penetra o pensamento dos assistentes e vê que entre si e eles a única diferença é a visibilidade e a invisibilidade. As lágrimas de crocodilo dos ávidos herdeiros não o abalam.

Quantas decepções devem os Espíritos experimentar nesse momento!

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