Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1861

Allan Kardec

Voltar ao Menu
Epístola de Erasto aos Espíritas Lioneses

Não é sem a mais suave emoção que venho entreter-me convosco, caros espíritas do grupo lionês. Num meio como o vosso, onde todas as camadas se confundem, onde todas as condições sociais se dão as mãos, sinto-me cheio de ternura e de simpatia, e feliz por vos poder anunciar que nós todos, que somos os iniciadores do Espiritismo na França, assistiremos com muito viva alegria os vossos ágapes fraternos, aos quais fomos convidados por João e Irineu, vossos eminentes guias espirituais. Ah! Esses ágapes despertam em meu coração a lembrança daqueles em que todos nos reuníamos, há mil e oitocentos anos, quando combatíamos os costumes dissolutos do paganismo romano, e quando já comentávamos os ensinos e as parábolas do Filho do Homem morto para a propagação da ideia santa, sobre o madeiro da infâmia. Meus amigos, se o Altíssimo, por efeito de sua infinita misericórdia, permitisse que a lembrança do passado pudesse brilhar um instante em vossa memória entorpecida, recordar-vos-íeis dessa época, ilustrada pelos santos mártires da plêiade lionesa: Sanctus, Alexandre, Attale, Episode a doce e corajosa Blandine, Irineu o bispo audaz, de cujo cortejo muitos de vós então participáveis, aplaudindo seu heroísmo e cantando louvores ao Senhor. Também vos lembraríeis de que vários dos que me ouvem regaram com seu sangue a terra lionesa, esta terra fecunda que Eucher e Gregório de Tours chamaram de pátria dos mártires. Não vo-los nomearei, mas podeis considerar os que, em vossos grupos, desempenham uma missão, um apostolado, como tendo sido mártires da propagação da ideia igualitária, ensinada do alto do Gólgota pelo nosso Cristo bem-amado! Hoje, caros discípulos, aquele que foi sagrado por São Paulo vem dizer-vos que vossa missão é sempre a mesma, porque o paganismo romano, sempre de pé, sempre vivaz, ainda enlaça o mundo, como a hera enlaça o carvalho. Deveis, pois, espalhar entre os vossos irmãos infelizes, escravos de suas paixões ou das paixões alheias, a santa e consoladora doutrina que meus amigos e eu viemos revelar-vos por nossos médiuns de todos os países. Não obstante, constatamos que os tempos progrediram; que os costumes já não são os mesmos e que a Humanidade cresceu, porque hoje, se fôsseis vítimas de perseguição, esta não emanaria mais de um poder tirânico e invejoso, como ao tempo da Igreja primitiva, mas de interesses coligados contra a ideia e contra vós, os apóstolos da ideia.

Acabo de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil nela deter-me um pouco, porque não vimos pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, pois, ao contrário, repelimos energicamente tudo quanto pareça ligar-se às prescrições de um comunismo antissocial. Antes de tudo, somos essencialmente propagandistas da liberdade individual, indispensável ao desenvolvimento dos encarnados. Consequentemente, somos inimigos declarados de tudo quanto se aproxime dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos. Embora me dirija a um auditório em parte composto de artífices e proletários, sei que suas consciências, esclarecidas pelas radiações da verdade espírita, já repeliram todo contato com as teorias antissociais dadas com apoio da palavra igualdade. Seja como for, creio dever restituir a ela sua significação cristã, conforme aquele que, dizendo: “Dai a César o que de César”, a explicou. Então, espíritas! A igualdade proclamada pelo Cristo, e que nós mesmos professamos nos vossos grupos amados, é a igualdade ante a justiça de Deus, isto é, nosso direito, conforme nosso dever cumprido, de subir na hierarquia dos Espíritos e um dia atingir os mundos adiantados, onde reina a perfeita felicidade. Para isto não são levados em conta nem o nascimento, nem a fortuna. O pobre e o fraco a alcançam, bem como o rico e o poderoso, porque uns não levam materialmente mais que os outros, e como lá ninguém compra seu lugar e seu perdão com dinheiro, os direitos são iguais para todos. Igualdade diante de Deus, eis a verdadeira igualdade. Não vos será perguntado o que possuístes, mas o uso que fizestes do que possuístes. Ora, quanto mais houverdes possuído, mais demoradas e mais difíceis serão as contas que tereis de prestar da vossa gestão. Assim, portanto, conforme vossas existências de missões, de provas ou de castigos nas paragens terrenas, cada um de vós, em consonância com as suas boas ou as más obras, progredirá na escala dos seres ou recomeçará, mais cedo ou mais tarde, a sua existência, caso se tenha desviado. Em consequência, repito, proclamando o dogma sagrado da igualdade, não vimos ensinar que aqui em baixo deveis ser todos iguais em riqueza, saber e felicidade, mas que chegareis todos, à vossa hora e conforme os vossos méritos, à felicidade dos eleitos, partilha das almas de escol que cumpriram os seus deveres. Meus caros espíritas, eis a igualdade a que tendes direito, a que vos conduzirá o Espiritismo emancipador, a que vos convido com todas as forças. Para atingi-la, que deveis fazer? Obedecer a estas duas palavras sublimes: amor e caridade, que resumem admiravelmente a lei e os profetas. Amor e caridade! Ah! Aquele que, segundo a sua consciência, cumprir as prescrições desta máxima divina, estará certo de subir rapidamente os degraus da escada de Jacob e de logo atingir as esferas elevadas, de onde poderá adorar, contemplar e compreender a majestade do Eterno.

Não podeis acreditar quanto nos é doce e agradável presidir ao vosso banquete, onde o rico e o artífice se acotovelam brindando à fraternidade; onde o judeu, o católico e o protestante podem sentar-se à mesma comunhão pascal. Não podeis crer quanto me sinto orgulhoso de vos distribuir, a todos e a cada um, os elogios e o encorajamento que o Espírito de Verdade, nosso bem-amado mestre, me ordenou conferir às vossas piedosas coortes. A ti, Dijoud; a ti, sua digna companheira; a vós todos, devotados missionários, que espalhais os benefícios do Espiritismo, obrigado por vosso concurso e vosso zelo. Mas, noblesse oblige, meus amigos, sobretudo a do coração. Seríeis muito culpados, muito criminosos se faltásseis, no futuro, às vossas santas missões. Mas não falhareis. Tenho como garantia o bem que realizastes e o que vos resta a fazer. Mas é a vós, meus bem-amados irmãos no labor cotidiano, que reservo minhas mais sinceras felicitações, porque, eu o sei, subis penosamente o vosso Gólgota, levando, como o Cristo, a vossa cruz dolorosa. Que poderia dizer de mais elogioso para vós do que lembrar a coragem e a resignação com que suportais os desastres inauditos que a luta fratricida mas necessária das duas Américas engendra em vosso meio? Ah! Ninguém pode negar que a benéfica influência do Espiritismo já se faz sentir. Ela penetrou, com a esperança e a fé, no meio das oficinas. Quando nos lembramos do período do último reino, em que, desde que faltava o trabalho, os operários desciam da Croix-Rousse para os Terreaux, em grupos tumultuosos, fazendo pressagiar motins, e os motins a repressão terrível, devemos agradecer a Deus a nova revelação. Com efeito, segundo essa imagem vulgar de que se servem em sua linguagem pitoresca, muitas vezes é preciso dançar diante do bufete. Então dizem, apertando o cinto: Bem! Comeremos amanhã!!! Bem sei que a caridade pública e particular se preocupam e agem, mas não é nisso que está o verdadeiro remédio. A Humanidade necessita de algo melhor. Por isso, se o Cristianismo preconizou a igualdade e as leis igualitárias, o Espiritismo encerra em suas entranhas a fraternidade e as suas leis, obra grandiosa e durável que os séculos futuros bendirão. Lembrai-vos, meus amigos, que o Cristo escolheu seus apóstolos entre os últimos dos homens, e que estes, mais fortes que os Césares, conquistaram o mundo para a ideia cristã. A vós, pois, incumbe a obra santa de esclarecer vossos companheiros de fábrica, e de propagar nossa sublime doutrina, que faz os homens tão fortes na adversidade, para que o espírito do mal e da revolta não venha suscitar o ódio e a vingança no coração dos vossos irmãos ainda não tocados pela graça espírita. Esta obra vos pertence por inteiro, meus caros amigos. Sei que a realizareis com o amor e o zelo que dá a consciência de um dever a cumprir. Um dia, a História reconhecida escreverá em seus anais que os operários de Lyon, esclarecidos pelo Espiritismo, muito mereceram da pátria em 1861 e 1862, pela coragem e resignação com que suportaram as tristes consequências das lutas escravagistas entre os Estados desunidos da América. Que importa! Esses tempos de lutas e de provas, meus filhos, são abençoados por Deus, enviados para desenvolver a coragem, a paciência e a energia para apressar a elevação e o aperfeiçoamento do orbe terrestre e dos Espíritos nele aprisionados nos laços carnais da matéria! Ide, agora. A trincheira está aberta no Velho Mundo, e sobre as suas ruínas aclamareis a era espírita da fraternidade, que vos mostra o objetivo e o fim das misérias humanas, consolando e fortalecendo vossos corações contra a adversidade e a luta. Confundireis os incrédulos e os ímpios, agradecendo a Deus o quinhão de vossos infortúnios e de vossas provas, porque estas vos aproximam da felicidade eterna.

Resta-me fazer-vos ouvir alguns conselhos já dados muitas vezes por vossos guias habituais, mas que minha posição pessoal e a circunstância atual me aconselham a lembrar-vos. Meus bons amigos, aqui me dirijo a todos os espíritas, a todos os grupos, a fim de que nenhuma cisão, nenhuma dissidência, nenhum cisma surjam entre vós, mas que, ao contrário, uma crença solidária vos anime e vos reúna todos, pois isto é necessário ao desenvolvimento de nossa doutrina benfazeja. Sinto como que uma vontade que me força a vos pregar a concórdia e a união, pois nisto, como em tudo, a união faz a força, e tendes necessidade de ser fortes e unidos, para fazer frente às tempestades que se aproximam. E não só tendes necessidade de união entre vós, mas ainda com os vossos irmãos de todas as regiões. Por isso vos exorto a seguirdes o exemplo que vos deram os espíritas de Bordéus, cujos grupos particulares formam, todos, os satélites de um grupo central, o qual solicitou entrar em comunicação com a Sociedade iniciadora de Paris, a primeira a receber os elementos de um corpo de doutrina e lançar as bases sérias para os estudos do Espiritismo, que todos nós, espíritas, professamos no mundo inteiro.

Sei que aquilo que vos digo aqui não ficará perdido; aliás estou me referindo inteiramente aos conselhos que já recebestes, e que ainda recebereis dos vossos excelentes guias espirituais que vos dirigirão nesta via salutar, pois é necessário que a luz vá do centro para a periferia e desta para o centro, a fim de que todos aproveitem e se beneficiem dos trabalhos de cada um. Aliás, é incontestável que submetendo ao cadinho da razão e da lógica todos os dados e todas as comunicações dos Espíritos, fácil será repelir o absurdo e o erro. Um médium pode ser fascinado; um grupo, enganado, mas o controle severo dos outros grupos; a ciência adquirida e a grande autoridade moral dos chefes de grupos; as comunicações dos principais médiuns que recebem um cunho de lógica e de autenticidade de nossos melhores Espíritos, rapidamente farão justiça aos ditados mentirosos e astuciosos emanados de uma turba de Espíritos enganadores, imperfeitos ou maus. Repeli-os impiedosamente, a todos esses Espíritos que dão conselhos exclusivos, pregando a divisão e o isolamento. Quase sempre são Espíritos vaidosos e medíocres, que tendem a impor-se aos homens fracos e crédulos, prodigalizando-lhes louvores exagerados, a fim de fasciná-los e de mantê-los sob seu domínio. Geralmente são Espíritos sedentos de poder, que, déspotas públicos ou no lar, quando vivos, ainda querem ter vítimas para tiranizar, após a sua morte. Meus amigos, em geral desconfiai das comunicações que tenham um caráter de misticismo ou de estranheza, ou que prescrevam cerimônias e atos bizarros. Nesses casos, há sempre um motivo legítimo de suspeita. Por outro lado, crede bem que quando uma verdade deve ser revelada à Humanidade, é, por assim dizer, instantaneamente comunicada em todos os grupos sérios, que possuem médiuns sérios.

Enfim, creio que é bom repetir aqui que ninguém é médium perfeito se for obsedado. A obsessão é um dos maiores escolhos, e há manifesta obsessão quando um médium não é apto a receber comunicações senão de um Espírito especial, por mais alto que este procure colocar-se. Em consequência, todo médium e todo grupo que se julgam privilegiados por comunicações que só eles podem receber e que, por outro lado, são submetidos a práticas que tocam a superstição, estão indubitavelmente sob o domínio de uma obsessão muito bem caracterizada. Digo tudo isto, meus amigos, porque existem no mundo médiuns fascinados por pérfidos Espíritos. Desmascararei impiedosamente tais Espíritos, se ousarem ainda profanar nomes venerados, dos quais se apoderam como ladrões e com os quais se enfeitam orgulhosamente, como lacaios com as roupas dos patrões. Eu os pregarei no pelourinho sem piedade, se persistirem em desviar do reto caminho cristãos honestos, espíritas zelosos, de cuja boa-fé abusaram. Numa palavra, deixai-me repetir o que já aconselhei aos espíritas parisienses: é melhor repelir dez verdades momentaneamente do que admitir uma só mentira, uma única teoria falsa, porque sobre essa teoria, sobre essa mentira podereis construir todo um sistema que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento erigido sobre areia movediça, ao passo que se hoje rejeitardes certas verdades, certos princípios, porque não vos são demonstrados logicamente, logo um fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá afirmar-vos a sua autenticidade.

A João, a Irineu, a Blandina, bem como a todos os vossos Espíritos protetores incumbe a tarefa de vos premunir de agora em diante contra os falsos profetas da erraticidade. O grande Espírito emancipador que preside aos nossos trabalhos sob o olhar do Todo-Poderoso proverá isso, podeis crer-me. Quanto a mim, embora esteja mais particularmente ligado aos grupos parisienses, virei algumas vezes entreter-me convosco e acompanharei sempre com interesse os vossos trabalhos particulares.

Esperamos muito da província lionesa, e sabemos que não faltareis, nem uns nem outros, às vossas respectivas missões. Lembrai-vos de que o Cristianismo, trazido pelas legiões cesaristas, lançou, há quase dois mil anos, as primeiras sementes da renovação cristã em Vienne e Lyon, de onde se propagaram rapidamente à Gália do Norte. Hoje o progresso deve realizar-se numa radiação nova, isto é, do Norte para o Sul. À obra, pois, lioneses! É preciso que a verdade triunfe, e não é sem uma legítima impaciência que esperamos a hora em que soará a trombeta de prata que nos anunciará o vosso primeiro combate e a vossa primeira vitória.

Agora deixai-me agradecer-vos o recolhimento com que me escutastes e a simpática acolhida que nos concedestes. Que Deus Todo-Poderoso, Senhor de nós todos, nos conceda sua benevolência e espalhe sobre vós e sobre o seu servo muito humilde os tesouros de sua misericórdia infinita! Adeus, lioneses! Eu vos bendigo!

ERASTO.


TEXTOS RELACIONADOS

Mostrar itens relacionados

Utilizamos cookies para melhorar sua experiência. Saiba mais em nossa Política de Privacidade.