CAPÍTULO VIII
BEM-AVENTURADOS OS QUE TÊM CORAÇÃO PURO
Simplicidade e pureza de coração. — Pecado por pensamentos. Adultério. — Verdadeira pureza. Mãos não lavadas. — Escândalos. Se a vossa mão é motivo de escândalo, cortai-a. — Instruções dos Espíritos: Deixai que venham a mim as criancinhas; Bem-aventurados os que têm fechados os olhos.
Simplicidade e pureza de coração.
1. Bem-aventurados os que têm puro o coração, porquanto verão a Deus. (S. Mateus 5:8)
2.
Apresentaram-lhe então algumas crianças, a fim de que ele as tocasse,
e, como seus discípulos afastassem com palavras ásperas os que lhas
apresentavam, Jesus, vendo isso, zangou-se e lhes disse:
“Deixai que venham a mim as criancinhas
e não as impeçais, porquanto o reino dos céus é para os que se lhes
assemelham. — Digo-vos, em verdade, que aquele que não receber o reino
de Deus como uma criança, nele não entra
rá.” — E, depois de as abraçar, abençoou-as, impondo-lhes as mãos. (S. Marcos, 10:13 a 16.)
3. A pureza do coração é
inseparável da simplicidade e da humildade. Exclui toda ideia de
egoísmo e de orgulho. Por isso é que Jesus toma a infância como emblema
dessa pureza, do mesmo modo que a tomou como o da humildade.
Poderia parecer menos justa essa comparação, considerando-se que o
Espírito da criança pode ser muito antigo e que traz, renascendo para a
vida corporal, as imperfeições de que se não tenha despojado em suas
precedentes existências. Só um Espírito que houvesse chegado à perfeição
nos poderia oferecer o tipo da verdadeira pureza. É exata a comparação,
porém, do ponto de vista da vida presente, porquanto a criancinha, não
havendo podido ainda manifestar nenhuma tendência perversa, nos
apresenta a imagem da inocência e da candura. Daí o não dizer Jesus, de
modo absoluto, que o reino dos céus é
para elas, mas para os que se lhes assemelhem.
4. Pois que o Espírito
da criança já viveu, por que não se mostra, desde o nascimento, tal qual
é? Tudo é sábio nas obras de Deus. A criança necessita de cuidados
especiais, que somente a ternura materna lhe pode dispensar, ternura que
se acresce da fraqueza e da ingenuidade da criança. Para uma mãe, seu
filho é sempre um anjo e assim era preciso que fosse, para lhe cativar a
solicitude. Ela não houvera podido ter-lhe o mesmo devotamento, se, em
vez da graça ingênua, deparasse nele, sob os traços infantis, um caráter
viril e as ideias de um adulto e, ainda menos, se lhe viesse a conhecer
o passado.
Aliás, faz-se necessário que a atividade do
princípio inteligente seja proporcionada à fraqueza do corpo, que não
poderia resistir a uma atividade muito grande do Espírito, como se
verifica nos indivíduos grandemente precoces. Essa a razão por que, ao
aproximar-se-lhe a encarnação, o Espírito entra em perturbação e perde
pouco a pouco a consciência de si mesmo, ficando, por certo tempo, numa
espécie de sono, durante o qual todas as suas faculdades permanecem em
estado latente. É necessário esse estado de transição para que o
Espírito tenha um novo ponto de partida e para que esqueça, em sua nova
existência, tudo aquilo que a possa entravar. Sobre ele, no entanto,
reage o passado. Renasce para a vida maior, mais forte, moral e
intelectualmente, sustentado e secundado pela intuição que conserva da
experiência adquirida.
A partir do nascimento, suas ideias
tomam gradualmente impulso, à medida que os órgãos se desenvolvem, pelo
que se pode dizer que, no curso dos primeiros anos, o Espírito é
verdadeiramente criança, por se acharem ainda adormecidas as idéias que
lhe formam o fundo do caráter. Durante o tempo em que seus instintos se
conservam amodorrados, ele é mais maleável e, por isso mesmo, mais
acessível às impressões capazes de lhe modificarem a natureza e de
fazê-lo progredir, o que torna mais fácil a tarefa que incumbe aos pais.
O Espírito, pois, enverga temporariamente a túnica da inocência e,
assim, Jesus está com a verdade, quando, sem embargo da anterioridade da
alma, toma a criança por símbolo da pureza e da simplicidade.
Pecado por pensamentos. Adultério.
5.
Aprendestes que foi dito aos antigos: “Não cometereis adultério. Eu,
porém, vos digo que aquele que houver olhado uma mulher, com mau desejo
para com ela, já em seu coração cometeu adultério com ela.”
(S. Mateus, 5:27 e 28.)
6. A palavra adultério não
deve absolutamente ser entendida aqui no sentido exclusivo da acepção
que lhe é própria, porém, num sentido mais geral. Muitas vezes Jesus a
empregou por extensão, para designar o mal, o pecado, todo e qualquer
pensamento mau, como, por exemplo, nesta passagem: “Porquanto se alguém
se envergonhar de mim e das minhas palavras, dentre esta
raça adúltera e pecadora, o Filho do homem também se envergonhará dele, quando vier acompanhado dos santos anjos, na glória de seu Pai.” (S. Marcos, 8:38.)
A
verdadeira pureza não está somente nos atos; está também no pensamento,
porquanto aquele que tem puro o coração, nem sequer pensa no mal. Foi o
que Jesus quis dizer: ele condena o pecado, mesmo em pensamento, porque
é sinal de impureza.
7. Esse princípio suscita naturalmente a seguinte questão: Sofrem-se as consequências de um pensamento mau, embora nenhum efeito produza?
Cumpre se faça aqui uma importante distinção. À medida que avança na
vida espiritual, a alma que enveredou pelo mau caminho se esclarece e
despoja pouco a pouco de suas imperfeições, conforme a maior ou menor
boa vontade que demonstre, em virtude do seu livre-arbítrio. Todo
pensamento mau resulta, pois, da imperfeição da alma; mas, de acordo com
o desejo que alimenta de depurar-se, mesmo esse mau pensamento se lhe
torna uma ocasião de adiantar-se, porque ela o repele com energia. É
indício de esforço por apagar uma mancha. Não cederá, se se apresentar
oportunidade de satisfazer a um mau desejo. Depois que haja resistido,
sentir-se-á mais forte e contente com a sua vitória.
Aquela
que, ao contrário, não tomou boas resoluções, procura ocasião de
praticar o mau ato e, se não o leva a efeito, não é por virtude da sua
vontade, mas por falta de ensejo. É, pois, tão culpada quanto o seria se
o cometesse.
Em resumo, naquele que nem sequer concebe a ideia
do mal, já há progresso realizado; naquele a quem essa ideia acode, mas
que a repele, há progresso em vias de realizar-se; naquele, finalmente,
que pensa no mal e nesse pensamento se compraz, o mal ainda existe na
plenitude da sua força. Num, o trabalho está feito; no outro, está por
fazer-se. Deus, que é justo, leva em conta todas essas gradações na
responsabilidade dos atos e dos pensamentos do homem.
Verdadeira pureza. Mãos não lavadas.
8. Então
os escribas e os fariseus, que tinham vindo de Jerusalém,
aproximaram-se de Jesus e lhe disseram: “Por que violam os teus
discípulos a tradição dos antigos, uma vez que não lavam as mãos quando
fazem suas refeições?”
Jesus
lhes respondeu: “Por que violais vós outros o mandamento de Deus, para
seguir a vossa tradição? Porque Deus pôs este mandamento: Honrai a vosso
pai e a vossa mãe; e este outro: Seja punido de morte aquele que disser
a seu pai ou a sua mãe palavras ultrajantes; e vós outros, no entanto,
dizeis: Aquele que haja dito a seu pai ou a sua mãe: — Toda oferenda que
faço a Deus vos é proveitosa, satisfaz à lei — ainda que depois não
honre, nem assista a seu pai ou a sua mãe. Tornam assim inútil o
mandamento de Deus, pela vossa tradição.
Hipócritas,
bem profetizou de vós Isaías, quando disse: Este povo me honra de
lábios, mas conserva longe de mim o coração; é em vão que me honram
ensinando máximas e ordenações humanas.”
Depois,
tendo chamado o povo, disse: “Escutai e compreendei bem isto: – Não é o
que entra na boca que macula o homem; o que sai da boca do homem é que o
macula. — O que sai da boca procede do coração e é o que torna impuro o
homem; — porquanto do coração é que partem os maus pensamentos, os
assassínios, os adultérios, as fornicações, os latrocínios, os
falsos-testemunhos, as blasfêmias e as maledicências. – Essas são as
coisas que tornam impuro o homem; o comer sem haver lavado as mãos não é o
que o torna impuro.”
Então,
aproximando-se dele, disseram-lhe seus discípulos: “Sabeis que, ouvindo o
que acabais de dizer, os fariseus se escandalizaram?” – Ele, porém,
respondeu: “Arrancada será toda planta que meu Pai celestial não
plantou. — Deixai-os, são cegos que conduzem cegos; se um cego conduz
outro, caem ambos no fosso.”
(S. Mateus, 15:1 a 20.)
9. Enquanto
ele falava, um fariseu lhe pediu que fosse jantar em sua companhia.
Jesus foi e sentou-se à mesa. — O fariseu entrou então a dizer consigo
mesmo: “Por que não lavou ele as mãos antes de jantar?” Disse-lhe,
porém, o Senhor: “Vós outros, fariseus, pondes grande cuidado em limpar o
exterior do copo e do prato; entretanto, o interior dos vossos corações
está cheio de rapinas e de iniquidades. Insensatos que sois! aquele que fez o exterior não é o que faz também o interior?”
(S. Lucas, 11:37 a 40.)
10. Os
judeus haviam desprezado os verdadeiros mandamentos de Deus para se
aferrarem à prática dos regulamentos que os homens tinham estatuído e da
rígida observância desses regulamentos faziam casos de consciência. A
substância, muito simples, acabara por desaparecer debaixo da
complicação da forma. Como fosse muito mais fácil praticar atos
exteriores, do que se reformar moralmente,
lavar as mãos do que expurgar o coração
iludiram-se a si próprios os homens, tendo-se como quites para com
Deus, por se conformarem com aquelas práticas, conservando-se tais quais
eram, visto se lhes ter ensinado que Deus não exigia mais do que isso.
Daí o haver dito o profeta:
É em vão que este povo me honra de lábios, ensinando máximas e ordenações humanas.
Verificou-se o mesmo com a doutrina moral do Cristo, que acabou por
ser atirada para segundo plano, donde resulta que muitos cristãos, a
exemplo dos antigos judeus, consideram mais garantida a salvação por
meio das práticas exteriores, do que pelas da moral. É a essas adições,
feitas pelos homens à lei de Deus, que Jesus alude, quando diz:
Arrancada será toda planta que meu Pai celestial não plantou.
O objetivo da religião é conduzir a Deus o homem. Ora, este não chega a
Deus senão quando se torna perfeito. Logo, toda religião que não torna
melhor o homem, não alcança o seu objetivo. Toda aquela em que o homem
julgue poder apoiar-se para fazer o mal, ou é falsa, ou está falseada em
seu princípio. Tal o resultado que dão as em que a forma sobreleva ao
fundo. Nula é a crença na eficácia dos sinais exteriores, se não obsta a
que se cometam assassínios, adultérios, espoliações, que se levantem
calúnias, que se causem danos ao próximo, seja no que for. Semelhantes
religiões fazem supersticiosos, hipócritas, fanáticos; não, porém,
homens de bem.
Não basta se tenham as aparências da pureza; acima de tudo, é preciso ter a do coração.
Escândalos. Se a vossa mão é motivo de escândalo, cortai-a.
11. Se algum escandalizar a um destes pequenos que creem em mim, melhor fora que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós que um asno faz girar e que o lançassem no fundo do mar.
Ai do mundo por causa dos escândalos; pois é necessário que venham escândalos; mas, ai do homem por quem o escândalo venha.
Tende
muito cuidado em não desprezar um destes pequenos. Declaro-vos que seus
anjos no céu veem incessantemente a face de meu Pai que está nos céus,
porquanto o Filho do homem veio salvar o que estava perdido.
Se
a vossa mão ou o vosso pé vos é objeto de escândalo, cortai-os e
lançai-os longe de vós; melhor será para vós que entreis na vida tendo
um só pé ou uma só mão, do que terdes dois e serdes lançados no fogo
eterno. — Se o vosso olho vos é objeto de escândalo, arrancai-o e
lançai-o longe de vós; melhor para vós será que entreis na vida tendo um
só olho, do que terdes dois e serdes precipitados no fogo do inferno.
(S. Mateus, 18:6 a 11; 5:29 e 30.)
12. No sentido vulgar, escândalo se
diz de toda ação que de modo ostensivo vá de encontro à moral ou ao
decoro. O escândalo não está na ação em si mesma, mas na repercussão que
possa ter. A palavra
escândalo implica
sempre a idéia de um certo arruído. Muitas pessoas se contentam com
evitar o escândalo, porque este lhes faria sofrer o orgulho, lhes
acarretaria perda de consideração da parte dos homens. Desde que as suas
torpezas fiquem ignoradas, é quanto basta para que se lhes conserve em
repouso a consciência. São, no dizer de Jesus: “sepulcros branqueados
por fora, mas cheios, por dentro, de podridão; vasos limpos no exterior e
sujos no interior”.
No sentido evangélico, a acepção da
palavra escândalo, tão amiúde empregada, é muito mais geral, pelo que,
em certos casos, não se lhe apreende o significado. Já não é somente o
que afeta a consciência de outrem, é tudo o que resulta dos vícios e das
imperfeições humanas, toda reação má de um indivíduo para outro, com ou
sem repercussão. O escândalo, neste caso,
é o resultado efetivo do mal moral.
13. É preciso que haja escândalo no mundo, disse
Jesus, porque, imperfeitos como são na Terra, os homens se mostram
propensos a praticar o mal, e porque, árvores más, só maus frutos dão.
Deve-se, pois, entender por essas palavras que o mal é uma consequência
da imperfeição dos homens e não que haja, para estes, a obrigação de
praticá-lo.
14. É necessário que o escândalo venha, porque,
estando em expiação na Terra, os homens se punem a si mesmos pelo
contacto de seus vícios, cujas primeiras vítimas são eles próprios e
cujos inconvenientes acabam por compreender. Quando estiverem cansados
de sofrer devido ao mal, procurarão remédio no bem. A reação desses
vícios serve, pois, ao mesmo tempo, de castigo para uns e de provas para
outros. É assim que do mal tira Deus o bem e que os próprios homens
utilizam as coisas más ou as escórias.
15.
Sendo assim, dirão, o mal é necessário e durará sempre, porquanto, se
desaparecesse, Deus se veria privado de um poderoso meio de corrigir os
culpados. Logo, é inútil cuidar de melhorar os homens. Deixando, porém,
de haver culpados, também desnecessário se tornariam quaisquer castigos.
Suponhamos que a humanidade se transforme e passe a ser constituída de
homens de bem: nenhum pensará em fazer mal ao seu próximo e todos serão
ditosos por serem bons. Tal a condição dos mundos elevados, donde já o
mal foi banido; tal virá a ser a da Terra, quando houver progredido
bastante. Mas, ao mesmo tempo que alguns mundos se adiantam, outros se
formam, povoados de Espíritos primitivos e que, além disso, servem de
habitação, de exílio e de estância expiatória a Espíritos imperfeitos,
rebeldes, obstinados no mal, expulsos de mundos que se tornaram felizes.
16. Mas, ai daquele por quem venha o escândalo. Quer
dizer que o mal sendo sempre o mal, aquele que a seu mau grado servir
de instrumento à justiça divina, aquele cujos maus instintos foram
utilizados, nem por isso deixou de praticar o mal e de merecer punição.
Assim é, por exemplo, que um filho ingrato é uma punição ou uma prova
para o pai que sofre com isso, porque esse pai talvez tenha sido também
um mau filho que fez sofresse seu pai. Passa ele pela pena de talião.
Mas, essa circunstância não pode servir de escusa ao filho que, a seu
turno, terá de ser castigado em seus próprios filhos, ou de outra
maneira.
17. Se vossa mão é causa de escândalo, cortai-a. Figura
enérgica esta, que seria absurda se tomada ao pé da letra, e que apenas
significa que cada um deve destruir em si toda causa de escândalo, isto
é, de mal; arrancar do coração todo sentimento impuro e toda tendência
viciosa. Quer dizer também que, para o homem, mais vale ter cortada uma
das mãos, antes que servir essa mão de instrumento para uma ação má;
ficar privado da vista, antes que lhe servirem os olhos para conceber
maus pensamentos. Jesus nada disse de absurdo, para quem quer que
apreenda o sentido alegórico e profundo de suas palavras. Muitas coisas,
entretanto, não podem ser compreendidas sem a chave que para as
decifrar o Espiritismo faculta.
Instruções dos Espíritos.
Deixai que venham a mim as criancinhas.
18. Disse o Cristo: “Deixai
que venham a mim as criancinhas.” Profundas em sua simplicidade, essas
palavras não continham um simples chamamento dirigido às crianças, mas,
também, o das almas que gravitam nas regiões inferiores, onde o
infortúnio desconhece a esperança. Jesus chamava a si a infância
intelectual da criatura formada: os fracos, os escravizados e os
viciosos. Ele nada podia ensinar à infância física, presa à matéria,
submetida ao jugo do instinto, ainda não incluída na categoria superior
da razão e da vontade que se exercem em torno dela e por ela.
Queria que os homens a ele fossem com a confiança daqueles entezinhos de
passos vacilantes, cujo chamamento conquistava, para o seu, o coração
das mulheres, que são todas mães. Submetia assim as almas à sua terna e
misteriosa autoridade. Ele foi o facho que ilumina as trevas, a
claridade matinal que toca a despertar; foi o iniciador do Espiritismo,
que a seu turno atrairá para ele, não as criancinhas, mas os homens de
boa vontade. Está empenhada a ação viril; já não se trata de crer
instintivamente, nem de obedecer maquinalmente; é preciso que o homem
siga a lei inteligente que se lhe revela na sua universalidade.
Meus
bem-amados, são chegados os tempos em que, explicados, os erros se
tornarão verdades. Ensinar-vos-emos o sentido exato das parábolas e vos
mostraremos a forte correlação que existe entre o que foi e o que é.
Digo-vos, em verdade: a manifestação espírita avulta no horizonte, e
aqui está o seu enviado, que vai resplandecer como o Sol no cume dos
montes.
João Evangelista.
Paris, 1863.
19. Deixai venham a mim as
criancinhas, pois tenho o leite que fortalece os fracos. Deixai venham a
mim todos os que, tímidos e débeis, necessitam de amparo e consolação.
Deixai venham a mim os ignorantes, para que eu os esclareça. Deixai
venham a mim todos os que sofrem, a multidão dos aflitos e dos
infortunados: eu lhes ensinarei o grande remédio que suaviza os males da
vida e lhes revelarei o segredo da cura de suas feridas! Qual é, meus
amigos, esse bálsamo soberano, que possui tão grande virtude, que se
aplica a todas as chagas do coração e as cicatriza? É o amor, é a
caridade! Se possuís esse fogo divino, que é o que podereis temer?
Direis a todos os instantes de vossa vida: “Meu Pai, que a tua vontade
se faça e não a minha; se te apraz experimentar-me pela dor e pelas
tribulações, bendito sejas, porquanto é para meu bem, eu o sei, que a
tua mão sobre mim se abate. Se é do teu agrado, Senhor, ter piedade da
tua criatura fraca, dar-lhe ao coração as alegrias sãs, bendito sejas
ainda. Mas, faze que o amor divino não lhe fique amodorrado na alma, que
incessantemente faça subir aos teus pés o testemunho do seu
reconhecimento!”
Se tendes amor, possuís tudo o que há de
desejável na Terra, possuís preciosíssima pérola, que nem os
acontecimentos, nem as maldades dos que vos odeiem e persigam poderão
arrebatar. Se tendes amor, tereis colocado o vosso tesouro lá onde os
vermes e a ferrugem não o podem atacar e vereis apagar-se da vossa alma
tudo o que seja capaz de lhe conspurcar a pureza; sentireis diminuir dia
a dia o peso da matéria e, qual pássaro que adeja nos ares e já não se
lembra da Terra, subireis continuamente, subireis sempre, até que vossa
alma, inebriada, se farte do seu elemento de vida no seio do Senhor.
Um Espírito protetor.
Bordéus, 1861.
Bem-aventurados os que têm fechados os olhos.*
* Esta comunicação foi dada com relação a uma pessoa cega, a cujo favor se evocara o Espírito de J.-B. Vianney, cura d’Ars.
20. Meus bons amigos, para
que me chamastes? Terá sido para que eu imponha as mãos sobre a pobre
sofredora que está aqui e a cure? Ah! que sofrimento, bom Deus! Ela
perdeu a vista e as trevas a envolveram. Pobre filha! Que ore e espere.
Não sei fazer milagres, eu, sem que Deus o queira. Todas as curas que
tenho podido obter e que vos foram assinaladas não as atribuais
senão àquele que é o Pai de todos nós. Nas vossas aflições, volvei
sempre para o céu o olhar e dizei do fundo do coração: “Meu Pai,
cura-me, mas faze que minha alma enferma se cure antes que o meu corpo;
que a minha carne seja castigada, se necessário, para que minha alma se
eleve ao teu seio, com a brancura que possuía quando a criaste.” Após
essa prece, meus amigos, que o bom Deus ouvirá sempre, dadas vos serão a
força e a coragem e, quiçá, também a cura que apenas timidamente
pedistes, em recompensa da vossa abnegação.
Contudo, uma vez que
aqui me acho, numa assembleia onde principalmente se trata de estudos,
dir-vos-ei que os que são privados da vista deveriam considerar-se os
bem-aventurados da expiação. Lembrai-vos de que o Cristo disse convir
que arrancásseis o vosso olho se fosse mau, e que mais valeria lançá-lo
ao fogo, do que deixar se tornasse causa da vossa condenação. Ah!
quantos há no mundo que um dia, nas trevas, maldirão o terem visto a
luz! Oh! sim, como são felizes os que, por expiação, vêm a ser atingidos
na vista! Os olhos não lhes serão causa de escândalo e de queda; podem
viver inteiramente da vida das almas; podem ver mais do que vós que
tendes límpida a visão!. . . Quando Deus me permite descerrar as pálpebras
a algum desses pobres sofredores e lhes restituir a luz, digo a mim
mesmo: Alma querida, por que não conheces todas as delícias do Espírito
que vive de contemplação e de amor? Não pedirias, então, que se te
concedesse ver imagens menos puras e menos suaves, do que as que te é
dado entrever na tua cegueira!
Oh! bem-aventurado o cego que
quer viver com Deus. Mais ditoso do que vós que aqui estais, ele sente a
felicidade, toca-a, vê as almas e pode alçar-se com elas às esferas
espirituais que nem mesmo os predestinados da Terra logram divisar.
Abertos, os olhos estão sempre prontos a causar a falência da alma;
fechados, estão prontos sempre, ao contrário, a fazê-la subir para Deus.
Crede-me, bons e caros amigos, a cegueira dos olhos é, muitas vezes, a
verdadeira luz do coração, ao passo que a vista é, com frequência, o
anjo tenebroso que conduz à morte.
Agora, algumas palavras
dirigidas a ti, minha pobre sofredora. Espera e tem ânimo! Se eu te
dissesse: Minha filha, teus olhos vão abrir-se, quão jubilosa te
sentirias! Mas, quem sabe se esse júbilo não ocasionaria a tua perda!
Confia no bom Deus, que fez a ventura e permite a tristeza. Farei tudo o
que me for consentido a teu favor; mas, a teu turno, ora e, ainda mais,
pensa em tudo quanto acabo de te dizer.
Antes que me vá, recebei todos vós, que aqui vos achais reunidos, a minha bênção.
Vianney, cura d’Ars.
Paris, 1863.
21.
Nota. Quando
uma aflição não é consequência dos atos da vida presente, deve-se-lhe
buscar a causa numa vida anterior. Tudo aquilo a que se dá o nome de
caprichos da sorte mais não é do que efeito da justiça de Deus, que não
inflige punições arbitrárias, pois quer que a pena esteja sempre em
correlação com a falta. Se, por sua bondade, lançou um véu sobre os
nossos atos passados, por outro lado nos aponta o caminho, dizendo:
“Quem matou à espada, pela espada perecerá”, palavras que se podem
traduzir assim: “A criatura é sempre punida por aquilo em que pecou.”
Se, portanto, alguém sofre o tormento da perda da vista, é que esta lhe
foi causa de queda. Talvez tenha sido a de que outro perdesse a vista;
de que alguém haja perdido a vista em conseqüência do excesso de
trabalho que aquele lhe impôs, ou de maus-tratos, de falta de cuidados,
etc. Nesse caso, passa ele pela pena de talião. É possível que ele
próprio, tomado de arrependimento, haja escolhido essa expiação,
aplicando a si estas palavras de Jesus: “Se o teu olho for motivo de
escândalo, arranca-o.”