Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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Variedades

Manifestações espontâneas diversas

Uma carta de um dos nossos correspondentes conta o seguinte:

...Começo por uma lembrança de minha infância, que jamais esqueci, embora remonte a uma época já bem afastada.

Em 1819 ou 1820, em Saumur, falou-se muito de uma aparição a um oficial da guarnição dessa cidade. Aquele oficial, alojado numa família distinta, deitou-se pela manhã para repousar de uma noite em claro. Algumas horas depois, abrindo os olhos, percebeu uma sombra no quarto, vestida de branco. Julgando tratar-se de uma brincadeira de um de seus camaradas, levantou-se para ir ao gaiato. A sombra recuou à sua frente, deslizou para a alcova e desapareceu. A porta, que ele havia fechado para não ser perturbado, ainda estava fechada, e uma mocinha da casa, que estava doente há algum tempo, acabara de morrer naquele mesmo instante.

O fato, que tange o maravilhoso, trouxe à lembrança de um de seus camaradas, o Sr. de R..., tenente de couraceiros, um sonho extraordinário que ele tinha tido algum tempo antes e que então deu a conhecer.

Estando na guarnição de Versalhes, o Sr. de R... sonhou que via um homem cortando o pescoço e colhendo o sangue num vaso. Às cinco da manhã, levantou-se, preocupado com o sonho, e dirigiu-se ao quartel de cavalaria; ele estava de serviço. Seguindo uma rua ainda deserta, notou um grupo de pessoas examinando algo com muita atenção. Aproximou-se e soube que um homem acabava de se matar e, coisa extraordinária, disseram-lhe, o homem havia cortado o pescoço e tinha deixado o sangue correr num balde. O Sr. de R... reconheceu, pela aparência desse homem, aquele mesmo que tinha visto durante a noite.

Eu só soube desses fatos por ouvir dizer, e não conheci nenhum dos oficiais. Eis outros, que me são quase pessoais:

Minha mãe era uma senhora de uma piedade verdadeira e esclarecida, que as mais das vezes só se manifestava por uma caridade ardente, como o quer o Espiritismo, mas absolutamente sem caráter supersticioso e impressionável. Muitas vezes ela me falou dessa lembrança de sua mocidade. Quando moça, tinha uma amiga doente, junto da qual passava parte das noites, para lhe prestar socorros. Uma noite em que ela caía de fadiga, o pai da moça doente insistiu para que fosse repousar, prometendo-lhe que se a filha piorasse ele iria preveni-la. Minha mãe cedeu e foi para a cama, depois de ter fechado o quarto. Pelas duas horas da manhã, foi despertada pelo contacto de dois dedos gelados sobre a espádua. Ela ficou vivamente impressionada e não pôde mais dormir. Então vestiu-se para ir à sua querida doente. Quando ia abrir a porta do seu quarto, bateram à porta da rua. Era um criado que lhe vinha comunicar a morte da amiga que acabara de falecer.

Em 1851, um dia eu percorria a galeria de quadros e retratos da família do magnífico castelo de C..., conduzido pelo Dr. B..., que tinha sido médico da família. Parei algum tempo em frente ao retrato de um homem de quarenta e poucos anos, vestido, se bem me lembro, com um costume azul, colete raiado vermelho e preto e calças cinza. O Sr. B... aproximou-se e me disse:

“Eis como vi o conde de C..., quinze dias depois de sua morte.” Pedi uma explicação, e eis o que ele me respondeu: Aproximadamente 15 dias após a morte do Sr. de C..., certa noite, ao anoitecer, eu saía do quarto da condessa. Para sair, eu precisava seguir um longo corredor, no qual se abria a porta do gabinete do Sr. de C... Quando cheguei em frente àquela porta, ela se abriu e o Sr. de C... saiu, avançou em minha direção e caminhou ao meu lado até à porta de saída.

O Sr. B... atribuiu esse fato a uma mera alucinação, mas, em todo caso, ela não se teria prolongado muito, porque penso que no fim do corredor havia outra peça a atravessar antes da saída.

Enfim, eis um fato que me é inteiramente pessoal:

Em 1829, creio, em Hagueneau, na Alsácia, eu era encarregado de um alojamento de convalescentes que nos enviava a numerosa guarnição de Strasbourg, então muito atacada por febres intermitentes. Entre os doentes eu tinha um jovem tambor que todas as noites, depois de meia noite, sentia alguém deslizar sobre sua cama, abraçá-lo e morder-lhe o peito à altura do mamilo esquerdo. Os seus companheiros de quarto me disseram que há oito dias eram despertados por seus gritos; que se aproximando dele, encontravam-no agitado, espantado e só conseguiam acalmá-lo passando a ponta de sabre por baixo da cama para lhe mostrar que não havia ninguém sob a cama nem nas proximidades. Encontrei o jovem soldado com o peito um pouco tumefacto e doloroso no lado esquerdo, e então atribuí seu estado à ação dessa causa física sobre sua imaginação; mas o efeito só se produzia uns instantes a cada vinte e quatro horas, e sempre na mesma hora. Produziu-se ainda algumas vezes, depois não mais ouvi falar do caso...

OBSERVAÇÃO: Sabe-se quão numerosos são os fatos espontâneos desse gênero. O Espiritismo os guarda na memória, porque ele dá a única explicação racional possível. Certamente há, entre esses casos, alguns que a rigor poderiam ser atribuídos àquilo que convencionou-se chamar de alucinação, ou a uma preocupação do espírito, mas eles já não poderiam ser assim considerados quando seguidos de um efeito material. Eles são tanto mais importantes quanto mais reconhecida sua autenticidade, e não podem, como dissemos num artigo precedente, ser levados à conta de charlatanice.

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