Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

Allan Kardec

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Dissertações espíritas

O Espiritismo e o Espírito maligno (Grupo de Sainte-Gemme - Médium: Sr. C...)

De todos os trabalhos a que se entrega a Humanidade, os preferíveis são os que mais aproximam a criatura de seu criador, que a põem diariamente e a cada instante em condições de admirara obra divina que saiu, e sai, incessantemente, de suas mãos onipotentes.

É dever do homem prosternar-se e adorar continuamente aquele que lhe deu os meios de se melhorar como Espírito, e assim atingir a suprema felicidade, que é o objetivo final para o qual deve tender.

Se há profissões que, quase exclusivamente intelectuais, dão ao homem os meios de elevar o nível da inteligência, um perigo, um grande perigo se acha ao lado dessa vantagem. Prova a história de todos os tempos o que é tal perigo e quantos males pode engendrar.

Sois dotados de uma inteligência superior. A tal respeito mais que os vossos irmãos estais próximos da Divindade, e chegais a negar essa própria Divindade ou a imaginá-la exatamente o contrário do que é. Nunca seria demais repetir nem se cansar de dizer: O orgulho é o mais encarniçado inimigo do gênero humano. Tivésseis mil bocas e todas deveriam repeti-lo incessantemente.

Deus vos criou a todos simples e ignorantes[1]. Tratai de avançar em passo tão seguro quanto possível. Isto depende de vós, pois jamais Deus recusa a graça ao que lhe pede de boa-fé.

Todos os estados podem igualmente vos conduzir ao objetivo desejado, se vos conduzirdes conforme o caminho da justiça e se não dobrardes a vossa consciência à vontade dos caprichos. Nada obstante, há estados nos quais é mais difícil progredir que em outros. Assim, Deus levará em conta aqueles que, tendo aceito como prova uma posição ambígua, tiverem percorrido sem tropeços tal via escorregadia ou, pelo menos, tiverem feito todos os esforços humanamente possíveis para se erguerem.

É aí que se faz necessária uma fé sincera, uma força pouco comum para resistir ao arrastamento para fora da linha de justiça, mas é também aí que se pode fazer um bem imenso aos irmãos infelizes. Ah! Existe um grande mérito naquele que toca o lodaçal, sem que suas vestes e ele próprio se enlameiem. É necessário que uma chama muito pura brilhe em si. Mas, também, que recompensa não lhe é reservada ao deixar a vida terrena![2]

Que aqueles que se acham em semelhantes posições meditem bem estas palavras; que se penetrem bem do espírito que as mesmas encerram, e neles operarse-á uma revolução benéfica que fará com que os suaves impulsos do coração substituam as pressões do egoísmo.

Quem transformará esses homens em homens novos, como indaga o Evangelho? E para realizar esse grande milagre, o que se faz necessário?

É preciso que eles queiram reportar seu pensamento àquilo a que estão destinados a ser depois da morte.

Eles estão todos convencidos de que o amanhã pode não existir, mas, aterrorizados pelo quadro sombrio e desolador das penas eternas, nas quais, por intuição, se recusam a acreditar, abandonam-se à corrente atual da vida; deixam-se arrastar por essa cupidez febril que os leva a acumular sempre, por todos os meios, lícitos ou não; arruínam sem piedade um pobre pai de família e prodigalizam ao vício somas que bastariam para uma cidade viver alguns dias.

Eles desviam os olhos do momento fatal. Ah! Se pudessem encará-lo de frente e com sangue frio, como mudariam de conduta! Como veríamos apressados em devolver ao legítimo dono esse pedaço de pão negro que tiveram a crueldade de roubar para aumentarem, ao preço de uma injustiça, uma fortuna feita de injustiças acumuladas!

O que é preciso para isso? É preciso que brilhe a luz espírita. É preciso se pudesse dizer, como um grande general dizia de uma grande nação: O Espiritismo é como o Sol. Cega quem não o vê! Os homens que se dizem e que se julgam cristãos e que repelem o Espiritismo são perfeitos cegos.

Qual a missão da doutrina, semeada atualmente no mundo pela mão onipotente do Criador? É a de conduzir os incrédulos à fé, os desesperados à esperança, os egoístas à caridade. Eles se dizem cristãos e anatematizam a doutrina de Jesus

Cristo. É verdade que dizem que é o Espírito Maligno que, para melhor se disfarçar, vem pregar tal doutrina neste mundo. Cegos infelizes! Pobres doentes! Que Deus, em sua bondade inesgotável, se digne fazer cessar a vossa cegueira e pôr um termo aos males que vos obsidiam!

Quem vos disse que era o Espírito do Mal? Quem? Vós nada sabeis acerca disto. Pedistes a Deus que vos esclarecesse sobre este assunto? Não, ou, se o fizestes, foi com uma ideia preconcebida. O Espírito do Mal! Sabeis quem vos disse que era o Espírito do Mal? Foi o orgulho, foi o próprio Espírito do Mal que ─ coisa revoltante! ─ vos leva a condenar o Espírito de Deus, representado pelos bons Espíritos que são enviados para regenerar o mundo!

Ao menos examinai a coisa e, conforme a regra estabelecida, condenai ou absolvei. Ah! Se ao menos quisésseis lançar um golpe de vista sobre os resultados inevitáveis que o triunfo do Espiritismo deve determinar! Se quisésseis ver os homens se considerando como irmãos, convencidos todos de que, de um momento para o outro, Deus lhes pedirá contas da maneira pela qual desempenharam a missão que lhes havia sido confiada! Se quisésseis ver em toda parte a caridade substituindo o egoísmo e o trabalho tomando o lugar da preguiça, pois sabeis que o homem nasceu para o trabalho. Deus fez do trabalho uma obrigação a que o homem não pode subtrair-se sem infringir as leis divinas.

Se quisésseis ver de um lado esses infelizes que dizem: Danados neste mundo e no outro, sejamos criminosos e gozemos, e do outro lado esses homens de ferro, esses açambarcadores da fortuna de todos, que dizem: A alma é uma palavra. Deus não existe. Se nada resta de nós após a morte, gozemos a vida. O mundo é composto de exploradores e de explorados. Prefiro estar com os primeiros a estar com os últimos. Depois de mim, o dilúvio. Se lançásseis o olhar sobre esses dois homens que personificam a pilhagem, a pilhagem da boa companhia e a que conduz à prisão; se os vísseis transformados pela crença na imortalidade que lhes deu o Espiritismo, ousaríeis dizer que foi pelo Espírito do Mal?

Vejo o desdém em vossos lábios e vos escuto: Nós é que pregamos a imortalidade e temos crédito por isso. Terão sempre mais confiança em nós do que nesses sonhadores ocos que, se não são trapaceiros, sonharam que os mortos saíam de seus túmulos para se comunicarem com eles. A isso sempre a mesma resposta: Examinai, e se, convencidos de boa-fé, o que não faltará se fordes sinceros, em vez de maldizer, bendireis, o que deve estar muito mais nas vossas atribuições, conforme a lei de Deus.

A lei de Deus! Em vossa opinião, sois os únicos depositários dela e vos admirais que outros tomem uma iniciativa que, segundo pensais, vos pertence exclusivamente. Ora! Escutai o que os Espíritos enviados por Deus têm a vos dizer:

“Vós que levais a sério o vosso ministério, sereis abençoados, porque tereis realizado todas as obras, não só determinadas, mas aconselhadas pelo divino Mestre. E vós que considerastes o sacerdócio como um objetivo humano, não sereis malditos, embora maldizendo os outros, mas Deus vos reserva uma punição mais justa. Dia virá em que sereis obrigados a vos explicardes publicamente sobre os fenômenos espíritas, e esse dia não está longe. Então vos encontrareis na necessidade de julgar, porque vos erigistes em tribunal. Julgar a quem? O próprio Deus, pois nada acontece sem sua permissão.

“Vede onde vos conduziu o Espírito do Mal, isto é, o orgulho! Em vez de vos inclinardes e orar, resistis contra a vontade do único que tem o direito de dizer: Eu quero. Vós, no entanto, dizeis que o demônio é que o diz: Eu quero!

“E agora, se persistirdes em não crer senão nas manifestações dos maus Espíritos, lembrai-vos das palavras do Mestre, que foi acusado de expulsar os demônios em nome de Belzebu: “Todo reino dividido contra si próprio será destruído.”


HIPPOLYTE FORTOUL



[1] Essa preposição, relativa ao estado primitivo das almas, pela primeira vez formulada em O Livro dos Espíritos, é hoje repetida por toda parte nas comunicações. Ela tem, assim, a sua consagração, tanto nessa concordância quanto na lógica, porque nenhum outro princípio responderia melhor à justiça de Deus. Dando a todos os homens o mesmo ponto de partida, deu a todos a mesma tarefa a desempenhar para atingir o fim. Ninguém é privilegiado pela Natureza. Como, porém, todos têm o livre-arbítrio, uns progridem mais rapidamente que outros. Tal princípio da justiça é inconciliável com a doutrina que admite a criação da alma ao mesmo tempo que o corpo. Ele comporta em si mesmo a pluralidade das existências, porque se a alma é anterior ao corpo, é que ela já viveu.




[2] Admiram-se de que Espíritos possam escolher uma reencarnação num desses meios onde se acham em contato incessante com a corrupção. Entre os que se acham em tais posições ínfimas da Sociedade, uns as escolheram por gosto, e para poderem satisfazer inclinações ignóbeis; outros, por missão e dever, a fim de tentarem tirar os seus irmãos do atoleiro e para terem mais mérito lutando, eles próprios, contra os arrastamentos perniciosos. Sua recompensa será proporcional às dificuldades vencidas. É o mesmo caso, entre nós, do operário que é pago em proporção ao perigo a que se expõe no exercício da profissão.




O corvo e a raposa (Sociedade espírita de Paris, 8 de agosto de 1862 - Médium: Sr. Leymarie)

Desconfiai dos aduladores. É a raça mentirosa. São encarnações de duas caras, que riem para enganar. Infeliz de quem os escuta e neles acredita, pois as noções do verdadeiro nele logo se pervertem. Entretanto, quanta gente se deixa levar por esse engodo mentiroso da adulação! Escutam com satisfação o velhaco que elogia as suas fraquezas, enquanto repelem o amigo sincero que lhes diz a verdade e lhes dá bons conselhos; atraem o falso amigo e afastam o verdadeiro e desinteressado. Para agradá-los é preciso adular, aprovar tudo, tudo aplaudir e achar tudo bom, mesmo o absurdo. E ─ coisa estranha! ─ repelem conselhos sensatos e acreditam na mentira do primeiro que vier, desde que essa mentira lisonjeie as suas ideias. Que quereis? Eles querem ser enganados e o são. Muitas vezes tardiamente percebem as consequências, mas então já está feito o mal, e às vezes ele não tem remédio.

De onde vem isso? A causa desse problema é quase sempre múltipla. A primeira, sem contestação, é o orgulho que os cega quanto à infalibilidade de seu próprio mérito, que julgam superior ao dos demais. Assim, sem dificuldade o tomam como modelo do senso comum. A segunda é devida a uma falta de senso, que lhes não permite vejam o lado certo e o errado das coisas, mas nisto ainda está o orgulho, que oblitera o julgamento, porque, sem orgulho, desconfiariam de si mesmos e se aconselhariam com os que têm mais experiência.

Acreditai, ainda, que os maus Espíritos não estão alheios ao caso. Eles gostam de mistificar e de fazer armadilhas. Quem nelas cairá mais facilmente do que os orgulhosos que são adulados? O orgulho é para eles a falta de couraça de uns, assim como a cupidez é de outros. Eles sabem habilmente disso tirar partido, mas não deixam de dirigir-se aos que, do ponto de vista moral, são mais fortes.

Quereis subtrair-vos à influência dos maus Espíritos? Subi, subi tão alto em virtude que eles não vos possam atingir, e então, vós é que sereis temidos por eles. Mas, se vos deixardes arrastar pela ponta da corda, eles subirão nela para vos forçar a descida; chamar-vos-ão com voz melosa, elogiarão vossa plumagem, e, a exemplo do corvo, deixareis cair o queijo.

SONNET
Estilo de boas comunicações (Sociedade espírita de Paris, 8 de agosto de 1862 - Médium: Sr. Leymarie)

Buscai, na palavra, a sobriedade e a concisão. Poucas palavras, muita coisa. A linguagem é como a harmonia: quanto mais quisermos torná-la rebuscada, menos melodiosa será. A verdadeira ciência é sempre aquela que atrai, não alguns sibaritas cheios de si, mas a massa inteligente que desde muito tempo é desviada do caminho do verdadeiro belo, que é o da simplicidade.

A exemplo de seu Mestre, os discípulos do Cristo haviam adquirido esse profundo saber de bem falar, com sobriedade e concisão, e seu discurso, como o do Mestre, era marcado por essa delicadeza, por essa profundeza que em nossos dias, numa época em que tudo mente ao nosso redor, ainda fazem as grandes vozes do Cristo e dos apóstolos, modelos inimitáveis de concisão e de precisão.

Mas a verdade desceu do alto. Como os apóstolos dos primeiros dias da era cristã, os Espíritos superiores vêm ensinar e dirigir.

O livro dos Espíritos é toda uma revolução, porque é conciso e sóbrio: poucas palavras, muita coisa; nada de flores de retórica; nada de imagens, mas apenas pensamentos grandes e fortes, que consolam e fortalecem. É por isso que ele agrada, e agrada porque é facilmente compreendido. Eis o cunho da superioridade dos Espíritos que o ditaram.

Por que há tantas comunicações vindas de Espíritos que se dizem superiores, refertas de insensatez, de frases inchadas e floridas; uma página para nada dizer? Tende certeza de que não são Espíritos superiores, mas pseudossábios, que julgam produzir efeito, substituindo por palavras o vazio das ideias; a profundeza do pensamento pela obscuridade. Eles não podem seduzir senão os cérebros ocos como os seus, que tomam o ouropel pelo ouro puro e julgam a beleza da mulher pelo brilho dos vestidos.

Desconfiai, pois, dos Espíritos verbosos, de linguagem empolada e confusa que exige tratos à bola para compreender. Reconhecei a verdadeira superioridade pelo estilo conciso, claro e inteligível sem esforço de imaginação. Não meçais a importância das comunicações por sua extensão, mas pela soma de ideias que encerram em pequeno espaço. Para ter o tipo da superioridade real, contai as palavras e as ideias ─ refiro-me às ideias justas, sadias e lógicas ─ e a comparação vos dará a exata medida.

BARBARET

(Espírito familiar)

A Razão e o sobrenatural (Sociedade espírita de Paris - Médium: Sra. Didier)

É o homem limitado na inteligência e nas sensações. Não pode compreender além de certos limites, e então pronuncia a palavra sacramental que tudo explica: Sobrenatural.

A palavra sobrenatural, na ciência nova que estudais, é palavra convencional. Ela existe para nada exprimir. Com efeito, o que essa palavra significa? Fora da Natureza; além do que é conhecido por nós.

Não há nada mais insensato e absurdo do que aplicá-la a tudo quanto está fora de nós. Para o homem que pensa, a palavra sobrenatural não é definitiva. Ela é vaga; ela faz pressentir.

É bem conhecida a frase banal do incrédulo por ignorância: “É sobrenatural. Ora, a razão, etc. etc.” Que é a razão? Ah! Quando a Natureza, alargando-se e agindo dominadora, nos mostra tesouros desconhecidos, a razão, neste sentido, se torna irracional e absurda, pois persiste, a despeito dos fatos. Ora, se há um fato, é que a Natureza o permite. A Natureza tem para nós manifestações sublimes, certamente, mas muito restritas, se entrarmos no domínio do desconhecido. Ah! Quereis escavar a Natureza; conhecer a causa das coisas, causa rerum, e julgais desnecessário pôr de lado vossa razão banal? Estais brincando, senhores. Que é a razão humana senão a maneira de pensar do vosso mundo? Correis de planeta a planeta e pensais que a razão vos deve acompanhar? Não, senhores. A única razão que deveis ter em meio a todos esses fenômenos é o sangue frio e a observação a partir desse ponto de vista, e não do ponto de vista da incredulidade.

Ultimamente abordamos questões muito sérias, como vos lembrais, mas, no meio do que dizíamos, não concluímos que todo mal vem dos homens. Depois de muitas lutas e discussões, também chegam os bons pensamentos, uma nova fé e esperanças novas. O Espiritismo, como eu vos disse ultimamente, é a luz que deve iluminar, de agora em diante, toda inteligência votada ao progresso.

A prece será o único dogma e a única prática do Espiritismo, isto é, a harmonia e a simplicidade. A arte será nova, porque fecundada pelas ideias novas. Pensai que toda obra inspirada por uma ideia filosófico-religiosa é sempre manifestação poderosa e sã, e o Cristo será sempre a Humanidade, mas não a Humanidade sofredora: será a Humanidade triunfante.

LAMENNAIS

ALLAN KARDEC

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