Os anjos segundo a Igreja.
1. Todas as religiões tiveram, sob diversos nomes, anjos, ou seja, seres
superiores à humanidade, intermediários entre Deus e os homens. O
materialismo, negando toda existência espiritual fora da vida orgânica,
naturalmente classificou os anjos entre as ficções e as alegorias. A
crença nos anjos faz parte essencial dos dogmas da Igreja; eis como ela
os define.*
* Tiramos este resumo da pastoral de Monsenhor Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para
a Quaresma de 1864. Pode-se então considerá-lo, assim como o dos demônios, proveniente
da mesma origem e citado no capítulo seguinte, como a última expressão do dogma da Igreja
sobre este ponto.
2. “Acreditamos firmemente, diz um concílio geral e ecumênico*, que não
há senão um verdadeiro Deus, eterno, e infinito, o qual, no começo dos
tempos, tirou juntas do nada ambas as criaturas, a espiritual e a
corporal, a angélica e a mundana, e em seguida formou, como
intermediária entre as duas, a natureza humana, composta de corpo e de
espírito.
“Tal é, segundo a fé, o plano divino na obra da criação: plano
majestoso e completo, como convinha à sabedoria eterna. Assim
concebido, ele oferece aos nossos pensamentos o ser em todos os graus e
em todas as condições. Na esfera mais elevada aparecem a existência e a
vida puramente espirituais; em último lugar, a existência e a vida
puramente materiais; e no intervalo que as separa, uma maravilhosa união
das duas substâncias, uma vida comum ao mesmo tempo do espírito
inteligente e do corpo organizado.
“Nossa alma é de uma natureza simples
e indivisível; mas ela é limitada em suas faculdades. A ideia que temos
da perfeição faz-nos compreender que pode haver outros seres simples
como ela, e superiores por suas qualidades e seus privilégios. Ela é
grande e nobre; mas está associada à matéria, servida por órgãos
frágeis, limitada em sua ação e poder. Por que não haveria outras
naturezas ainda mais nobres, livres dessa escravidão e desses entraves,
dotadas de uma força maior e de uma atividade incomparável? Antes que
Deus tivesse posto o homem na terra para que este o conhecesse, amasse e
servisse, não devia ele ter já chamado outras criaturas para compor sua
corte celeste e adorá-lo na sua morada de glória? Deus, enfim, recebe
das mãos do homem o tributo de honra e a homenagem deste universo; será
espantoso que receba das mãos do anjo o incenso e a prece do homem? Se
então os anjos não existissem, a grande obra do Criador não teria o
coroamento e a perfeição de que ele era capaz; este mundo, que atesta
sua onipotência, não seria mais a obra-prima de sua sabedoria; nossa
própria razão, embora fraca e débil, poderia facilmente concebê-lo
mais completo e mais acabado.
“A cada nova página dos livros sagrados do
Antigo e do Novo Testamento, é feita menção a essas sublimes
inteligências, em invocações piedosas ou em traços históricos. Sua
intervenção aparece manifestamente na vida dos patriarcas e dos
profetas. Deus serve-se do ministério deles, quer para intimar suas
vontades, quer para anunciar os acontecimentos futuros; faz deles quase
sempre os órgãos de sua justiça ou de sua misericórdia. A presença deles
confunde-se com as diversas circunstâncias do nascimento, da vida e da
paixão do Salvador; sua lembrança é inseparável da dos grandes homens e
dos fatos mais importantes da antiguidade religiosa. Ele encontra-se
mesmo no seio do politeísmo, e sob as fábulas da mitologia; pois a
crença de que se trata é tão antiga e tão universal como o mundo; o
culto que os pagãos prestavam aos bons e aos maus gênios era apenas uma
falsa aplicação da verdade, um resto degenerado do dogma primitivo.
“As
palavras do santo concílio de Latrão contêm uma distinção fundamental
entre os anjos e os homens. Elas nos ensinam que os primeiros são puros
Espíritos, ao passo que estes são compostos de um corpo e uma alma; ou
seja, a natureza angélica mantém-se por si mesma, não só sem mistura,
mas ainda sem associação real possível com a matéria, por mais leve e
sutil que a suponham; ao passo que nossa alma, igualmente espiritual,
está associada ao corpo de maneira a formar com ele uma única e mesma
pessoa, e esse é essencialmente seu destino.
“Enquanto dura essa
união tão íntima da alma com o corpo, essas duas substâncias têm uma
vida em comum, e exercem uma sobre a outra uma influência recíproca; a
alma não se pode libertar inteiramente da condição imperfeita que lhe
advém daí: suas ideias chegam-lhe pelos sentidos, pela comparação dos
objetos exteriores, e sempre sob imagens mais ou menos aparentes. Daí
decorre que ela não pode contemplar a si mesma, e que não pode
representar-se Deus e os anjos sem lhes supor alguma forma visível e
palpável. É por isso que os anjos, para se mostrarem aos santos e aos
profetas, precisaram recorrer a figuras corporais; mas essas figuras
eram apenas corpos aéreos que eles faziam mover sem se identificarem com
eles, ou atributos simbólicos relacionados com a missão de que
estavam encarregados.
“Seu ser e seus movimentos não estão localizados e
circunscritos num ponto fixo e limitado do espaço. Não estando presos a
nenhum corpo, não podem ser detidos e limitados, como nós, por outros
corpos; não ocupam nenhum lugar e não preenchem nenhum vazio; mas, assim
como nossa alma está toda em nosso corpo e em cada uma de suas partes,
igualmente eles estão inteiramente, e quase simultaneamente, em todos os
pontos e em todas as partes do mundo; mais rápidos do que o pensamento,
podem estar em toda a parte num piscar de olhos e aí operar por si
mesmos, sem outros obstáculos a seus desígnios senão a vontade de Deus e
a resistência da liberdade humana.
“Enquanto estamos reduzidos a ver
apenas pouco a pouco, e numa certa medida, as coisas que estão fora de
nós, e as verdades da ordem sobrenatural nos aparecem como enigma e num
espelho, segundo a expressão do apóstolo São Paulo, eles veem sem
esforço o que lhes importa saber, e estão em relação imediata com o
objeto de seu pensamento. Seus conhecimentos não são o resultado da
indução e do raciocínio, mas dessa intuição clara e profunda que abarca
juntamente o gênero e as espécies que dele derivam, os princípios e as
consequências que deles decorrem.
“A distância dos tempos, a diferença
dos lugares, a multiplicidade dos objetos não podem produzir nenhuma
confusão em seu espírito.
“A essência divina, sendo infinita, é
incompreensível; ela tem mistérios e profundezas que eles não podem
penetrar. Os desígnios particulares da Providência são-lhes ocultados;
mas ela revela-lhes o segredo, quando os encarrega, em certas
circunstâncias, de anunciá-los aos homens.
“As comunicações de Deus aos
anjos, e dos anjos entre si, não se fazem, como entre nós, por meio de
sons articulados e outros sinais sensíveis. As puras inteligências não
precisam nem dos olhos para ver, nem dos ouvidos para ouvir; também não
têm o órgão da voz para manifestar seus pensamentos, este intermediário
habitual de nossas conversas não lhes é necessário; mas elas comunicam
seus sentimentos de uma maneira que lhes é própria e que é completamente
espiritual. Para serem compreendidas, basta-lhes querê-lo.
“Só Deus
sabe a quantidade dos anjos. Essa quantidade, sem dúvida, não poderia
ser infinita, e não o é; mas, de acordo com os autores sagrados e os
doutores da Igreja, é muito considerável e verdadeiramente prodigiosa.
Se é natural proporcionar o número de habitantes de uma cidade ao seu
tamanho e à sua extensão, não sendo a terra mais do que um átomo em
comparação ao firmamento e às imensas regiões do espaço, é preciso
concluir que o número de habitantes do céu e do ar é muito maior do que o
dos homens.
“Visto que a majestade dos reis tira seu esplendor do
número de seus súditos, de seus oficiais e de seus servidores, o que
haverá de mais capaz de nos dar uma ideia da majestade do Rei dos reis
do que essa multidão incontável de anjos que povoam o céu e a terra, o
mar e os abismos, e a dignidade dos que permanecem incessantemente
prosternados ou de pé diante de seu trono?
“Os doutores da Igreja e os
teólogos ensinam geralmente que os anjos estão distribuídos em três
grandes hierarquias ou principados, e cada hierarquia em três companhias
ou coros.
“Os da primeira e mais alta hierarquia são designados em
razão das funções que preenchem no céu. Uns são chamados
Serafins,
porque estão como que inflamados diante de Deus pelos ardores da
caridade; outros
Querubins, porque são um reflexo luminosos de sua
sabedoria; aqueles,
Tronos, porque proclamam sua grandeza e fazem
resplandecer seu brilho.
“Os da segunda hierarquia recebem seus nomes
das operações que lhes são atribuídas no governo geral do universo; são
eles: as Dominações, que designam aos anjos das ordens inferiores suas
missões e seus encargos; as Virtudes, que realizam os prodígios exigidos
pelos grandes interesses da Igreja e do gênero humano; as Potestades,
que protegem por sua força e vigilância as leis que regem o mundo físico
e moral.
“Os da terceira hierarquia têm por quinhão a direção das
sociedades e das pessoas; são: os Principados, encarregados dos reinos,
das províncias e das dioceses; os Arcanjos, que transmitem as mensagens
de suma importância; os Anjos da Guarda, aqueles que acompanham cada um
de nós para velar por nossa segurança e nossa santificação.”
* Concílio de Latrão.