Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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As memórias de um marido (Pelo Sr. Fernand Duplessis)

Os traços do Espiritismo que se encontram por toda parte, são como as inscrições e as medalhas antigas que atestam, através dos séculos, o movimento do espírito humano. As crenças populares, sem contradita, contêm os traços, ou melhor, os germes das ideias espíritas em todas as épocas e em todos os povos, mas misturadas a lendas supersticiosas, como o ouro das minas está misturado à ganga. Não é somente aí que se deve procurá-las, é na expressão dos sentimentos íntimos, porque aí que as encontramos no estado de pureza. Se pudéssemos sondar todos os arquivos do pensamento, ficaríamos surpresos de ver até que ponto elas estão arraigadas no coração humano, desde a vaga intuição até os princípios claramente formulados. Ora, quem, pois, os fez nascer antes do aparecimento do Espiritismo?

Dirão que é uma influência de camarilha? Elas aí nasceram espontaneamente porque estão na Natureza; mas, muitas vezes foram abafadas ou desnaturadas pela ignorância e pelo fanatismo. Hoje o Espiritismo, que passou ao status de filosofia, vem arrancar essas plantas parasitas e constituir um corpo de doutrina daquilo que não passava de vaga aspiração.

Um dos nossos correspondentes de Joinville-sur-Marne, o Sr. Petit-Jean, ao qual já devemos numerosos documentos sobre este assunto, manda-nos um dos mais interessantes, que temos a satisfação de acrescentar aos que já publicamos.

“Joinville, 16 de julho de 1868.

“Eis ainda pensamentos espíritas! Estes têm tanto mais importância porque não são, como tantos outros, o produto da imaginação, ou uma ideia explorada pelos romancistas. São a exposição de uma crença partilhada pela família de um convencional, e expressa na mais grave circunstância da vida, na qual não se pensa em brincar com as palavras.

“Eu as colhi numa obra literária, que tem como título: As Memórias de um Marido, que não são senão o relato minucioso da vida do Sr. Fernand Duplessis. Essas Memórias foram editadas em 1849, por Eugène Sue, a quem o Sr. Fernand Duplessis havia enviado, com a missão de publicá-las, a título, segundo suas próprias expressões, de expiação para ele e de ensinamento para os outros. Dou-vos a análise das passagens que têm mais relação com a nossa crença.”

“A Sra. Raymond, bem como o seu filho, prisioneiros políticos, recebem a visita do Sr. Fernand Duplessis, seu amigo. Essa visita dá lugar a uma conversa, em seguida à qual assim falou a Sra. Raymond ao seu filho (pg. 121):

Vejamos, meu filho, - continuou a Sra. Raymond num tom de afetuosa censura ─ é de hoje que temos dado os primeiros passos nesta carreira onde devemos agradecer a Deus um dia sem angústias? Será que continuamos, será que atingimos o alvo para onde tendemos, sem dor, sem perigos e muitas vezes sem martírio? Será que não nos dissemos cem vezes que a nossa vida não nos pertence, mas à santa causa da liberdade, pela qual teu pai morreu no cadafalso? Visto que já estás na idade da razão, será que não nos habituamos à ideia que um dia eu poderia ter que cerrar as tuas pálpebras, como tu poderias fechar as minhas? Será que existe motivo para nos entristecermos previamente? Alguma vez me vês abatida, sombria, porque vivo sempre com a lembrança querida e sagrada de teu pai, cuja fronte sanguinolenta beijei, e que enterrei com minhas próprias mãos? Não temos fé como os nossos pais, os gauleses, no renascimento indefinido de nossos corpos e de nossas almas, que vão, um a um, povoar a imensidade dos mundos? Para nós, o que é a morte? O começo de outra vida, nada mais. Estamos do lado de cá da cortina, passamos para o outro, onde perspectivas imensas aguardam o nosso olhar. Quanto a mim, não sei se é porque sou filha de Eva, ─ acrescentou a Sra. Raymond com um meio sorriso, ─ mas o fenômeno da morte jamais me inspirou senão uma excessiva curiosidade.”

Pg. 208:

O pensamento da morte excitava, sobretudo em Jean, uma vivíssima curiosidade. Espiritualista por essência, ele partilhava, com sua mãe, seu tio e Charpentier, a crença viril que foi a de nossos pais, os gauleses.

Segundo o admirável dogma druídico, sendo o homem imortal, alma e corpo, espírito e matéria, ele ia assim, alma e corpo, incessantemente renascer e viver de mundo em mundo, elevando-se, a cada nova migração, para uma perfeição infinita como a do Criador.

“Só essa valorosa crença explicava, aos meus olhos, o soberbo desprendimento com o qual Jean e sua mãe encaravam esses terríveis problemas que lançam tanta perturbação e tanto espanto nas almas fracas, habituadas a ver na morte o nada ou o fim da vida física, ao passo que a morte não é senão a hora de um renascimento completo, que uma outra vida espera com suas novidades misteriosas.

Mas ah! Não me era dado partilhar dessa crença. Eu via, com doloroso pavor, aproximar-se o dia fatal em que Jean seria julgado pela Corte dos Pares. Quando chegou esse dia, a Sra. Raymond pediu-me que a acompanhasse a essa temível sessão. Em vão quis dissuadi-la desse desígnio, com receio de uma condenação à morte proferida contra Jean; contudo, não ousava exprimir-lhe as minhas apreensões, mas ela adivinhou o meu pensamento. Meu caro senhor Duplessis, disse-me ela, o pai de meu filho morreu no cadafalso pela liberdade; piedosamente enterrei-o com as minhas mãos... se meu filho também deve morrer pela mesma causa, saberei cumprir o meu dever com mão firme... Credes que possam condenar Jean à morte?... Eu creio que só poderão condená-lo à imortalidade. (Textual). Dai-me o vosso braço, senhor Duplessis... Dominai a vossa emoção e vamos à Câmara dos Pares.

“Jean foi condenado à morte e devia ser executado dois dias depois. Fui vê-lo na prisão e esperava no mínimo ter a força de resistir a essa última e fúnebre entrevista. Quando entrei, ele fazia, vigiado por um policial, a sua toalete matinal, com um cuidado tão minucioso como se estivesse em casa. Ele veio a mim estendendo-me as mãos; depois, olhando-me no rosto, disse-me com ansiedade:

“─ Meu Deus! Meu bom Fernand, como estás pálido!... O que tens?

“─ O que tenho! exclamei, fundindo-me lágrimas e atirando-me ao seu pescoço, tu me perguntas!

“─ Pobre Fernand! respondeu-me ele, emocionado por minha comoção, acalma-te... coragem!

“─ E és tu que me encorajas neste momento supremo?! disse-lhe eu. Mas, então, como tua mãe, és dotado de uma força sobre-humana?

“─ Sobre-humana! Não. Tu nos honras muito, retomou ele sorrindo, mas minha mãe e eu sabemos o que é a morte... e esta não nos apavora... Nossa alma muda de corpo, como nossos corpos mudam de roupa; vamos reviver alhures e esperar ou nos reunir aos que amamos. Graças a esta crença, meu amigo, e à curiosidade de ver mundos novos, misteriosos; enfim, graças a consciência da realização próxima de nossas ideias e da certeza de deixar depois de si a memória de um homem honesto, tu o confessarás, a partida deste mundo nada oferece de tão pavoroso, ao contrário.”

“Jean Raymond não foi executado; sua pena foi comutada em prisão perpétua e ele foi transferido para a cidadela de Doullens.”

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