Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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O Espiritismo em toda a parte

Jornal a Solidarité

O Espiritismo conduz precisamente ao fim a que se propõem todos os homens progressistas. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecerem, eles não pensem da mesma maneira sobre certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem as mãos para caminhar juntos, na mesma rota, ao encontro de seus inimigos comuns, os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.

O Solidarité é um jornal cujos redatores levam o seu título a sério. E que campo é mais vasto e mais fecundo para o filósofo moralista do que essa palavra que encerra todo o programa do futuro da Humanidade! Assim, essa folha, que sempre se faz notar pelo alto alcance de suas vistas, se não tem a popularidade das folhas leves, conquistou um crédito mais sólido entre os pensadores sérios[1], Embora até hoje ela não se tenha mostrado muito simpática às nossas doutrinas, não rendemos menos justiça à sinceridade de seus pontos de vista e ao incontestável talento de sua redação. É, pois, com uma viva satisfação que hoje a vemos, por sua vez, fazer justiça aos princípios do Espiritismo. Seus redatores nos farão também a de reconhecer que não fizemos nenhum movimento para trazê-los a nós. Sua opinião não é, pois, o resultado de qualquer condescendência pessoal.

Sob o título de: Boletim do movimento filosófico e religioso, o número de 1º de maio contém um notável artigo, do qual extraímos as passagens seguintes:

“A lama vai aumentando sem cessar. Onde irá parar? Não é só em política que não se entendem mais; não é somente economia social, é também em moral e em religião, de sorte que a perturbação se estende a todas as esferas da atividade humana, que invadiu o domínio da consciência e que a própria civilização está em causa.

“Não que a ordem material esteja em perigo. Há hoje na Sociedade muitos elementos adquiridos e muitos interesses a conservar, para que a ordem material possa nela ser seriamente perturbada. Mas a ordem material nada prova. Ela pode persistir por muito tempo até que o princípio da vida social seja atingido e que a corrupção dissolva lentamente o organismo. A ordem reinava em Roma sob os Césares, enquanto a civilização romana se ia esboroando dia a dia, não sob o esforço dos bárbaros, mas sob o peso de seus próprios vícios.

“Nossa Sociedade conseguirá eliminar de seu seio os elementos mórbidos que ameaçam transformar-se, para ela, em germes de dissolução e de morte? Assim esperamos, mas é necessário o ponto de apoio dos princípios eternos, o concurso de uma ciência verdadeiramente positiva, e a perspectiva de um ideal novo.

“Eis as condições da salvação social, porque aí estão, para os indivíduos, os meios de um verdadeiro renascimento. Uma sociedade não pode ser senão o produto dos seres sociais que a constituem, e o resultante de seu estado físico, intelectual e moral. Se quiserdes uma transformação social, fazei, para começar, o homem novo[2].

“Embora o círculo dos leitores de publicações filosóficas tenha crescido muito nestes últimos anos, quanta gente ainda ignora a existência destes jornais ou quanta gente negligencia a sua leitura! É um erro. Sem eles, é impossível se dar conta do estado das almas. Os órgãos da filosofia contemporânea têm ainda um outro alcance: preparam as questões que os acontecimentos levantarão em breve, e que será urgente resolver.

“Certamente a confusão é grande na imprensa filosófica; é um pouco a torre de Babel: cada um aí fala a sua língua e aí se preocupa muito mais em cobrir a voz do vizinho do que em escutar as suas razões. Cada sistema aspira ser único e exclui todos os outros. Mas há que se guardar de tomá-los ao pé da letra em seu exclusivismo. Talvez não haja um só que não represente um ponto de vista legítimo. Todos passarão, porquanto só a verdade é eterna, mas nenhum deles, talvez, terá sido completamente estéril; nenhum terá desaparecido sem adicionar alguma coisa ao capital intelectual da Humanidade. O materialismo, o positivismo religioso e o positivismo filosófico, o independentismo (perdoem o barbarismo, que não é meu), o criticismo, o idealismo, o espiritualismo, o espiritismo ─ pois é preciso contar com este recém-vindo, que tem mais partidários que todos os outros reunidos; ─ e, por outro lado, o protestantismo liberal, o idealismo liberal, e mesmo o catolicismo liberal: tais são os nomes das principais bandeiras que, a títulos diversos e com forças desiguais, se acham representados no campo filosófico. Sem dúvida não existe aí um exército, porque não há obediência a um chefe nem hierarquia nem disciplina, mas esses grupos, hoje divididos e independentes, podem ser reunidos por um perigo comum.

“O movimento filosófico a que assistimos precede de pouco tempo o grande movimento religioso que se prepara. Em breve as questões religiosas apaixonarão os espíritos, como o faziam há pouco as questões sociais, e mais fortemente ainda.

“Que a ordem deva fundar-se por uma simples evolução da ideia cristã reconduzida à sua pureza primitiva, como o pensam alguns, ou por uma espécie de fusão de crenças no terreno vago de um deísmo judeu-cristão, como esperam outros homens de boa vontade, ou, o que nos parece muito mais provável, pela intervenção de uma ideia mais larga e mais compreensível que dê à vida humana o seu verdadeiro objetivo, a primeira necessidade da época em que estamos é a liberdade: liberdade de pensar e de publicar o seu pensamento; liberdade de consciência e de culto; liberdade de propaganda e de pregação! Certamente, em meio a tantos sistemas em confronto, é impossível não se veja uma fase de discussões ardentes, apaixonadas, aparentemente desordenadas, mas essa fase preparatória é necessária como a agitação caótica é necessária à criação. Como os relâmpagos e os raios na atmosfera terrestre, o amálgama das ideias agita a atmosfera moral para purificá-la. Quem pode temer a tempestade, sabendo que ela deve restabelecer o equilíbrio perturbado e renovar as fontes da vida?”

O mesmo número contém a seguinte apreciação de nossa obra sobre a GêneseGênese. Não a reproduzimos senão porque ela se liga aos interesses gerais da Doutrina:

“Passa-se em nossa época um fato de importância capital, e fingem não ver. Entretanto, aí há fenômenos a observar, que interessam à Ciência, notadamente à Física e à Fisiologia humanas; mas, mesmo que os fenômenos que são chamados Espiritismo só existissem na imaginação de seus adeptos, a crença no Espiritismo, por toda parte espalhada tão rapidamente, é em si mesma um fenômeno considerável e muito digno de ocupar as meditações do filósofo.

“É difícil, mesmo impossível apreciar o número das pessoas que creem no Espiritismo, mas podemos dizer que essa crença é geral nos Estados Unidos, e que ela se propaga cada vez mais na Europa. Na França, há toda uma literatura espírita. Paris possui dois ou três jornais que a representam. Lyon, Bordéus, Marselha, cada uma tem o seu.

“O Sr. Allan Kardec é na França o mais eminente representante do Espiritismo. Foi uma felicidade para essa crença ter encontrado um chefe que soube mantê-la nos limites do racionalismo. Teria sido muito fácil, com toda essa mistura de fenômenos reais e de criações puramente ideais e subjetivas que constitui a maravilha do que se chama o Espiritismo, deixar-se arrastar pela atração do milagre e pela ressurreição de velhas superstições! O Espiritismo poderia ter dado aos inimigos da razão um poderoso apoio, se ele tivesse voltado à demonologia, e existe no seio do mundo católico um partido que para isto ainda faz todos os esforços. Há também uma literatura deplorável, malsã, mas felizmente sem influência. Ao contrário, o Espiritismo, na França como nos Estados Unidos, resistiu ao espírito da Idade Média. O demônio nele não representa nenhum papel, e o milagre nele não vem introduzir as suas tolas explicações.

“Deixando de lado a hipótese que constitui o fundo do Espiritismo, e que consiste em crer que os Espíritos das pessoas mortas se entretenham com os vivos por meio de certos processos de correspondência, muito simples e ao alcance de todos; deixando de lado, dizíamos, a hipótese deste ponto de partida, encontramonos em presença de uma doutrina geral que está perfeitamente em relação com o estado da ciência de nossa época, e que responde perfeitamente às necessidades e às aspirações modernas. E o que há de notável é que a Doutrina Espírita é mais ou menos a mesma em toda parte. Se não é estudada senão na França, pode-se crer que as obras do Sr. Allan Kardec, que são como a enciclopédia do Espiritismo, aí são abundantes. Mas esta paridade de doutrina se estende aos outros países; por exemplo, os ensinamentos de Davis, nos Estados Unidos, não diferem essencialmente dos do Sr. Allan Kardec. É verdade que nas ideias emitidas pelo Espiritismo, nada se encontra que não pudesse ter sido encontrado pelo espírito humano entregue apenas aos recursos da imaginação e da ciência positiva; mas, considerando-se que as sínteses que são propostas pelos escritores espíritas são científicas e racionais, elas merecem ser examinadas sem prevenção, sem ideia preconcebida, pela crítica filosófica.

“A nova obra do Sr. Allan Kardec aborda as questões que constituem objeto de nossos estudos. Não podemos hoje fazer-lhe o relato. A ela voltaremos num próximo número, e diremos, ao mesmo tempo, o que pensamos dos fenômenos ditos espíritas e das explicações que dos mesmos podem ser dadas no estado atual da ciência.”

NOTA: Esse mesmo número contém um notável artigo do Sr. Raisant, intitulado Meu ideal religioso, e que os espíritas não desdenhariam.



[1] O Solidarité, jornal mensal de 16 páginas in-4, aparece no dia 1º de cada mês. Preço: Paris, 5 francos por ano; Departamentos, 6 francos; estrangeiro, 7 francos. Preço por número, 25 centavos; pelo correio, 30 centavos. ─ Redação: Rua des Saints-Pères, 13, na Librairie des Sciences Sociales.


[2] Escrevemos em 1862: “Antes de fazer as instituições para os homens, há que formar os homens para as instituições” (Viagem espírita).



Conferências



Numa série de conferências feitas em abril último, pelo Sr. Chavée, no Instituto Livre do Boulevard des Capucines, nº. 39, o orador fez, com tanto talento quanto verdadeira ciência, um estudo analítico e filosófico dos Vedas indianos e das leis de Manu, comparados com o livro de Jó e os Salmos. Esse tema conduziu a considerações de um elevado alcance, que tocam diretamente os princípios fundamentais do Espiritismo. Eis algumas notas, colhidas por um ouvinte dessas conferências. Não são senão pensamentos apanhados a esmo, que necessariamente perdem ao serem destacados do conjunto e privados de seu desenvolvimento, mas que bastam para mostrar a ordem de ideias seguidas pelo autor:

“De que serve lançar um véu sobre o que é? De que serve não dizer bem alto o que se pensa baixinho? É preciso ter a coragem de dizer. Quanto a mim, terei esta coragem.”

“Nos Vedas indianos está dito: ‘Temos os nossos pares lá no alto’, e eu sou desta opinião.”

“Com os olhos da carne não se pode ver tudo.”

“O homem tem uma existência indefinida, e o progresso da alma é indefinido. Seja qual for a soma de suas luzes, ela tem sempre a aprender, porque tem o infinito à sua frente e, embora não possa atingi-lo, seu objetivo será sempre dele aproximarse cada vez mais.”

“O homem individual não pode existir sem um organismo que o limite no seio da criação. Se a alma existe após a morte, então tem um corpo, um organismo que chamo de organismo superior, em oposição ao corpo carnal, que é o organismo inferior. Durante a vigília, esses dois organismos estão, por assim dizer, confundidos; durante o sono, o sonambulismo e o êxtase, a alma não se serve senão de seu corpo etéreo ou organismo superior; nesse estado ela é mais livre; suas manifestações são mais elevadas, porque ela age sobre esse organismo mais perfeito, que lhe oferece menos resistência; ela abarca um conjunto e relações que admira, o que não pode fazer com o seu organismo inferior, que limita a sua clarividência e o campo de suas observações.”

“A alma não tem extensão; ela não é estendida senão por seu corpo etéreo, e circunscrita pelos limites desse corpo, que São Paulo chama organismo luminoso.”

“Um organismo, etéreo nos seus elementos constitutivos, mas invisível e atingível apenas pela indução científica, em nada contraria as leis conhecidas da Física e da Química.”

“Há fatos que a experimentação sempre pode reproduzir, constatando no homem a existência de um organismo interno superior, que deve suceder ao organismo opaco habitual, no momento da destruição deste último.”

“Depois que a morte separa a alma de seu organismo carnal, ela continua a vida no espaço, com seu corpo etéreo, assim conservando a sua individualidade. Entre os homens, dos quais temos falado e que estão mortos segundo a carne, certamente há alguns aqui entre nós, que assistem, invisíveis, às nossas conversas; eles estão ao nosso lado e planam acima de nossas cabeças; eles nos veem e nos escutam. Sim, eles estão aqui, eu vos asseguro.

“A escala dos seres é contínua; antes de ser o que somos, passamos por todos os graus dessa escala que estão abaixo de nós, e continuaremos a subir os que estão acima. Antes que o nosso cérebro fosse réptil, ele foi peixe, e foi peixe antes de ser mamífero.

“Os materialistas negam estas verdades; são gente honesta; são de boa-fé, mas enganam-se! Desafio um materialista a vir aqui, a esta tribuna, provar que tem razão e que estou errado. Que venham provar o materialismo! Não, não o provarão; apenas emitirão ideias apoiadas no vazio; apenas oporão negativas, ao passo que vou demonstrar por fatos a verdade de minha tese.”

“Há fenômenos patológicos que provam a existência da alma após a morte? Sim, há e vou citar um. Vejo aqui doutores em medicina, que pretendem que isto não se dá. Responder-lhes-ei apenas isto: Se não o vistes, é porque olhastes mal. Observai, buscai, estudai e encontrareis, como eu próprio encontrei.

“É ao sonambulismo e ao êxtase que vou pedir as provas que vos prometi. ─ Ao sonambulismo? perguntar-me-ão. Mas a Academia de Medicina ainda não o reconheceu. ─ Que me importa isto? Nada tenho com a Academia de Medicina e a dispenso. ─ Mas o Sr. Dubois, de Amiens, escreveu um grosso volume in-8º contra essa doutrina. ─ Isto também não me importa: são opiniões sem provas, que desaparecem diante dos fatos.”

“Dir-me-ão ainda: ‘Já não está em moda defender o sonambulismo.’ Responderei que não me preocupo em estar na moda, e que se poucos homens ousam professar verdades que ainda atraem o ridículo, sou daqueles a quem o ridículo não pode atingir, e que o enfrentam de boa-vontade, para dizer corajosamente o que julgam ser a verdade. Se cada um de nós agisse assim, em breve a incredulidade perderia todo o terreno que ganhou há algum tempo, e seria substituída pela fé. Não a fé que é filha da revelação, mas a fé mais sólida, filha da ciência, da observação e da razão.”

O orador cita numerosos exemplos de sonambulismo e de êxtase, que lhe deram a prova, de certo modo material, da existência da alma, de sua ação isolada do corpo carnal, de sua individualidade após a morte, e, finalmente, de seu corpo etéreo, que não é senão o envoltório fluídico ou perispírito.

Como podemos ver, a existência do perispírito, suspeitada por inteligências de escol desde a mais alta Antiguidade, mas ignorada pelas massas, demonstrada e vulgarizada nestes últimos tempos pelo Espiritismo, é toda uma revolução nas ideias psicológicas e, consequentemente, na Filosofia. Admitido este ponto de partida, chega-se forçosamente, de dedução em dedução, à individualidade da alma, à pluralidade das existências, ao progresso indefinido, à presença dos Espíritos entre nós, numa palavra, a todas as consequências do Espiritismo, até ao fato das manifestações, que se explicam de maneira toda natural.

Por outro lado, demonstramos em tempo que, partindo do princípio da pluralidade das existências, hoje admitido por numerosos pensadores sérios, mesmo fora do Espiritismo, chega-se exatamente às mesmas consequências.

Portanto, se homens cujo saber tem autoridade professam abertamente, pela palavra e pelos escritos, mesmo sem falar do Espiritismo, uns a doutrina do perispírito sob um nome qualquer, outros a pluralidade das existências, na realidade professam o Espiritismo, porquanto são duas rotas que forçosamente a ele conduzem. Se eles beberam essas ideias em si mesmos e nas próprias observações, isto prova melhor que elas estão na Natureza e quão irresistível é o seu poder. Assim, o perispírito e a reencarnação são, de agora em diante, duas portas abertas para o Espiritismo, no domínio da filosofia e nas crenças populares.

As conferências do Sr. Chavée são, pois, verdadeiras conferências espíritas, menos a palavra. E, sob este último aspecto, diremos que elas são, no momento, mais proveitosas para a doutrina do que se ele arvorasse abertamente a bandeira. Elas popularizam as suas ideias fundamentais sem ofuscar aqueles que, por ignorância da coisa, tivessem prevenção contra o nome. Uma prova evidente da simpatia que estas ideias encontram na opinião é o acolhimento entusiasta que é feito às doutrinas professadas pelo Sr. Chavée, pelo numeroso público que se comprime em suas conferências.

Estamos persuadido que mais de um escritor que põe os espíritas em ridículo aplaude o Sr. Chavée e suas doutrinas, que acha perfeitamente racionais, sem suspeitar que elas não são nada mais nada menos que puro Espiritismo.

O jornal la Solidarité, em seu número de 1º de maio, que citamos acima, traz um relato dessas conferências, para o qual chamamos a atenção dos nossos leitores, porquanto ele completa sob outros pontos de vista os ensinamentos acima.

NOTA: A abundância de matérias nos força a adiar para o próximo número o relato de dois interessantíssimos folhetins do Sr. Bonnemère, autor do Romance do futuro, publicados no Siècle de 24 e 25 de abril de 1868, sob o título de Paris sonâmbulo. O Espiritismo aí é claramente definido.

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