Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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Os Aissaouá ou os convulsionários da rua Le Peletier

Entre as curiosidades atraídas a Paris pela Exposição, uma das mais estranhas é certamente a dos exercícios executados por árabes da tribo dos aïssaouá. O Monde Illustré, de 19 de outubro de 1867 fornece um relato acompanhado de vários desenhos das diversas cenas que o autor do artigo testemunhou na Argélia. Ele começa assim o seu relato:

“Os aïssaouá formam uma seita religiosa muito espalhada na África e sobretudo na Argélia. Não conhecemos o seu objetivo; sua fundação remonta, dizem uns, a Aïssa, o escravo favorito do Profeta; outros pretendem que sua confraria foi fundada por Aïssa, piedoso e sábio marabu do século dezesseis. Seja como for, os aïssaouá sustentam que o seu piedoso fundador lhes dá o privilégio de serem insensíveis ao sofrimento.”

Tiramos do Petit Journal de 30 de setembro de 1867 o relato de uma das sessões que uma companhia de aïssaouá deu em Paris, durante a Exposição, primeiro no teatro do Campo de Marte e em último lugar na sala da arena atlética da rua Le Peletier. Sem dúvida a cena não tem o caráter imponente e terrível das que se realizam nas mesquitas, cercadas pelo prestígio das cerimônias religiosas. Mas, à parte algumas nuanças de detalhes, os fatos são os mesmos e os resultados idênticos, e aí está o essencial. Aliás, tendo-se passado as coisas em plena Paris, aos olhos de numeroso público, o relato não pode ser suspeito de exagero. É o Sr. Timothée Trimm que fala:

“Confesso que ontem à noite vi coisas que deixam muito para trás os irmãos Davenport e os pretensos milagres do magnetismo. Os prodígios são produzidos numa pequena sala, ainda não classificada na hierarquia dos espetáculos. Isto se passa na arena atlética da rua Le Peletier. Sem dúvida é por isso que tão pouco se trata dos feiticeiros, dos quais falo hoje.

É evidente que tratamos com iluminados, porque eis vinte e seis árabes que se agacham e, para começar, se servem de castanholas de ferro para acompanhar seus cantos.

Do corpo de balé muçulmano inicialmente saiu o primeiro, um jovem árabe que tomou um carvão aceso. Não suspeito que pudesse ser um carvão de um calor fictício, adrede preparado, porque senti o seu ardor quando ele passou em minha frente e queimou o assoalho quando escapou das mãos que o sustinham. O homem tomou esse carvão ardente, colocou-o em sua boca com gritos horríveis e ali o conservou.

Para mim é evidente que esses bárbaros aïssaouá são verdadeiros convulsionários maometanos. No século passado houve os convulsionários de Paris. Os aïssaouá da rua Le Peletier certamente acharam essa curiosa descoberta do prazer, da volúpia e do êxtase na mortificação corporal.

Théophile Gautier, com seu estilo inimitável, descreveu as danças desses convulsionários árabes. Eis o que ele dizia no Moniteur de 29 de julho último:

O primeiro interlúdio de dança era acompanhado por três grandes caixas e três oboés, tocando em modo menor uma cantilena de uma melancolia nostálgica, sustentada por esses ritmos implacáveis que acabam se apoderando de nós e sentimos uma vertigem. Dir-se-ia uma alma lamentosa que a fatalidade força a marchar com um passo sempre igual para um fim desconhecido, mas que se pressente doloroso.

Em breve levantou-se uma dançarina com esse ar abatido que têm as dançarinas orientais, como uma morta que despertasse de uma encantação mágica e por imperceptíveis deslocamentos dos pés aproximou-se do proscênio; uma de suas companheiras juntou-se a ela e começaram, animando-se pouco a pouco, sob a pressão da mesura, essas torções de ancas, essas ondulações de torso, esses balanços de braços agitando lenços de seda raiados de ouro e essa pantomima langorosamente voluptuosa que forma o fundo da dança das bailadeiras orientais. Levantar a perna para uma pirueta ou um “jeté-battu” seria, aos olhos dessas dançarinas, o cúmulo da indecência.

No fim, todo o elenco se pôs de lado e notamos, entre as outras, uma dançarina de uma beleza arisca e bárbara, vestida de “haïks” brancos e enfeitada com uma espécie de “chachia” cercada de cordões. Suas sobrancelhas negras unidas com “surmeh” na raiz do nariz e sua boca vermelha como um pimentão, no meio da face pálida, lhe davam uma fisionomia ao mesmo tempo terrível e encantadora; mas a atração principal da noite era a sessão dos aïssaouá, ou discípulos de Aïssa, a quem o mestre legou o singular privilégio de impunemente devorar tudo o que lhes apresentam.

Aqui, para dar a compreender a excentricidade dos nossos convulsionários argelinos, prefiro a minha prosa simples e sem arte à fraseologia elegante e sábia do mestre. Eis, então, o que vi:

Chega um árabe; dão-lhe um pedaço de vidro para comer! Ele o toma, mete-o na boca e o come!... Por alguns minutos ouvem-se os seus dentes mastigando o vidro. Aparece sangue na superfície dos lábios trêmulos... Ele engole o pedaço de vidro quebrado, dançando e fazendo genuflexões, ao som dos tam-tans.

A este sucede um árabe que traz na mão galhos de figueira da Barbária, o cacto de espinhos compridos. Cada aspereza da folhagem é como uma ponta acerada. O árabe come essa folhagem picante, como comeríamos uma salada de alface ou de chicória.

Quando a folhagem mortal de cactos acabou de ser absorvida, veio um árabe que dançava com uma lança na mão. Ele apoiou a lança no olho direito, dizendo versículos sagrados, que bem deveriam compreender os nossos oculistas... e o olho direito saiu completamente da órbita!... Todos os assistentes soltaram um grito de terror!

Então veio um homem que mandou amarrar o corpo com uma corda... vinte homens puxam; ele luta, sente a corda entrar nas carnes; ri e canta durante essa agonia.

Eis um outro energúmeno diante do qual trazem um sabre turco. Passei os dedos pela lâmina fina e cortante como a de uma navalha. O homem desfaz a cintura, mostra seu ventre nu e se deita sobre a lâmina; empurram-na, mas o damasco respeita a sua epiderme; o árabe venceu o aço.

“Passo em silêncio os aïssaouá que comem fogo, colocando os pés descalços sobre um braseiro ardente. Fui ver o braseiro nos bastidores e atesto que é ardente e composto de lenha inflamada. Também examinei a boca dos que são chamados comedores de fogo. Os dentes são queimados, as gengivas são calcinadas, a abóbada palatina parece ter-se endurecido. Mas é mesmo fogo, todos esses tições que engolem, com contorções danadas, procurando aclimatar-se no inferno... que passa por um país quente.

O que mais me impressionou nessa estranha exibição dos convulsionários da rua Le Peletier, foi o comedor de serpentes. Imaginai um homem que abre um cesto. Dez serpentes de cabeça ameaçadora saem, silvando. O árabe manipula as serpentes, agrada-as, faz que elas se enrolem em torno de seu torso nu. Depois escolhe a maior e mais esperta e com os dentes morde e lhe arranca a cauda. Então o réptil se torce nas angústias da dor. Ela apresenta a cabeça irritada ao árabe que põe a íngua à altura do dardo; de repente, com uma dentada, arranca a cabeça da serpente e a come. Ouve-se o estalar do corpo do réptil nos dentes do selvagem, que mostra através dos lábios ensanguentados o monstro decapitado. Durante esse tempo, a música melancólica dos tam-tans continua o seu ritmo sagrado, e o devorador de serpentes vai cair, perdido e atordoado, aos pés dos cantores místicos.

Até a semana passada eles tinham feito esse exercício somente com serpentes da Argélia, que poderiam ter sido domesticadas na viagem. Mas as serpentes argelinas se acabam, como todas as coisas. Ontem era a estréia das serpentes de Fontainebleau; o Argelino parecia cheio de desconfiança em relação aos nossos répteis nacionais.

Vá quanto ao fogo devorado, suportado nas extremidades... na planta dos pés e na palma das mãos... mas o mastigador de vidro e o comedor de serpentes!... são fenômenos inexplicáveis.

Nós os tínhamos visto outrora num aduar, nas proximidades de Blidah, diz o Sr. Théophile Gautier, e esse sabá noturno nos deixou lembranças ainda arrepiantes. Os aïssaouá, depois de excitados pela música, pelo vapor dos perfumes e esse balanço de fera, que agita como uma juba sua imensa cabeleira, morderam folhas de cactos; mastigaram carvões ardentes; lamberam pás rubras; engoliram vidro moído que se ouvia estalar em seus maxilares; atravessaram a língua e as bochechas com agulhas; fizeram os olhos saltarem fora das órbitas e andaram sobre o fio de um yatagan de aço de Damasco; um deles, atado em um nó corrediço de uma corda puxada por sete ou oito homens, parecia cortado em dois. Isto não os impediu, acabados os exercícios, de virem saudar-nos em nosso lugar, à maneira oriental, e receber o seu “bacchich”.

Das horríveis torturas a que acabavam de se submeter, não restava qualquer marca. Que alguém mais sábio que nós explique o prodígio, pois de nossa parte, renunciamos.

Sou da opinião de meu ilustre colega e venerado superior na grande arte de escrever, tão difícil quanto a de engolir répteis. Não procuro explicar estas maravilhas; mas era meu dever de cronista não deixá-las passar em silêncio.”

Nós próprio assistimos a uma sessão dos aïssaouá e podemos dizer que este relato nada tem de exagerado. Vimos tudo o que aí está contado e mais, um homem atravessar a face e o pescoço com um espeto cortante, em forma de lardeadeira. Tendo tocado o instrumento e examinado a coisa bem de perto, convencemo-nos que não havia nenhum subterfúgio e que o ferro realmente atravessava as carnes. Mas, coisa bizarra, o sangue não corria e a ferida cicatrizava quase que instantaneamente. Vimos um outro manter na boca ardentes carvões de pedra, do tamanho de um ovo, cuja combustão ativava pelo sopro, passeando em redor da sala e lançando centelhas. Era fogo tão real que vários espectadores nele acenderam os charutos.

Aqui não se trata, pois, de golpes de mágica, de simulacros, nem de charlatanice, mas de fatos positivos; de um fenômeno fisiológico que confunde as mais vulgares noções da Ciência; entretanto, por mais estranho que seja, não pode ter senão uma causa natural. O que é mais estranho ainda é que a Ciência parece não lhe haver prestado a menor atenção. Como é que sábios, que passam a vida à procura das leis da vitalidade, ficam indiferentes à vista de semelhantes fatos e não lhes buscam as causas? Julgam-se dispensados de qualquer explicação, dizendo que “são simplesmente convulsionários como havia no último século”. Seja, estamos de acordo. Mas, então, explicai o que se passava com os convulsionários. Considerando-se que os mesmos fenômenos se produzem hoje, aos nossos olhos, diante do público, que o primeiro pode vê-los e tocá-los, então não era uma comédia. Esses pobres convulsionários, dos quais tanto zombaram, não eram, então, pelotiqueiros e charlatães, como pretenderam? Os mesmos efeitos, produzindo-se à vontade, por infiéis, em nome de Alá ou de Maomé, não são, pois, milagres, como outros pensaram? Dirão que são iluminados. Seja, ainda; mas então seria preciso explicar o que é ser iluminado. É preciso que a iluminação não seja uma qualidade tão ilusória quanto supõem, porquanto seria capaz de produzir efeitos materiais, tão singulares; seria, em todo caso, uma razão a mais para estudá-la com cuidado. Se esses efeitos não são milagres nem habilidades de prestidigitação, há que concluir que são efeitos naturais cuja causa é desconhecida, mas que sem dúvida não é impossível de ser encontrada. Quem sabe se o Espiritismo, que já nos deu a chave de tantas coisas incompreendidas, não nos dará ainda esta? É o que examinaremos num próximo artigo.

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