Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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O homem antes da história

Ancianidade da raça humana (1)

Na história da Terra, a Humanidade talvez não passe de um sonho, e quando o nosso velho mundo adormecer nos gelos de seu inverno, a passagem de nossas sombras por sua fronte talvez nele não terá deixado qualquer lembrança. A Terra possui uma história própria, incomparavelmente mais rica e mais complexa que a do homem. Muito tempo antes do aparecimento de nossa raça, durante séculos e séculos, ela foi alternativamente ocupada por habitantes diversos, por seres primordiais, que estenderam sua dominação sucessiva à sua superfície, e desapareceram com as modificações elementares da física do globo.

Num dos últimos períodos, na época terciária, para a qual podemos atribuir sem medo uma época várias centenas de milhares de anos antes de nós, o sítio onde hoje Paris desdobra os seus esplendores era um Mediterrâneo, um golfo do oceano universal, acima do qual apenas se elevavam na França o terreno cretáceo de Troie, Rouen, Tours; o terreno jurássico de Chaumont, Bourges, Niort; o terreno triássico dos Vosges e o terreno primitivo dos Alpes, da Auvergne e das costas da Bretanha. Mais tarde a configuração mudou. Na época em que ainda viviam o mamute, o urso das cavernas, o rinoceronte de narinas separadas, podia-se ir por Terra de Paris a Londres; e talvez esse trajeto fosse efetuado por nossos antepassados daquele tempo, porque havia homens aqui, antes da formação da França geográfica.

Sua vida diferia tanto da nossa quanto a dos selvagens dos quais nos ocupávamos recentemente. Uns tinham construído suas aldeias sobre estacaria, no meio dos grandes lagos; essas cidades lacustres, comparáveis às dos castores, foram adivinhadas em 1853, quando em consequência de uma longa seca, os lagos da Suíça tendo baixado a uma estiagem inusitada, puseram a descoberto estacarias, utensílios de pedra, de chifre, de ouro e de argila, vestígios inequívocos da antiga habitação humana; e essas cidades aquáticas não eram uma exceção, pois foram encontradas mais de duzentas outras, só na Suíça. Conta Heródoto que os palonianos habitavam cidades semelhantes sobre o lago Prasias. Cada cidadão que tomava mulher era obrigado a mandar virem três pedras da floresta vizinha e fixá-las no lago. Como o número de mulheres não era limitado, o piso da cidade cresceu depressa. As cabanas tinham comunicação com a água por um alçapão, e os meninos eram amarrados pelo pé a uma corda, por medo de acidente. Homens, cavalos, gado, viviam juntos, alimentando-se de peixe. Hipócrates relata os mesmos costumes dos habitantes de Phase. Em 1826, Dumont d’Urville descobriu cidades lacustres análogas nas costas da Nova Guiné.

Outros moravam em cavernas, em grutas naturais, ou arranjavam um refúgio grosseiro contra os animais ferozes. Hoje encontram-se seus ossos misturados aos da hiena, do urso das cavernas, do rinoceronte ticorino. Em 1852, um cavouqueiro, querendo conhecer a profundidade de um buraco pelo qual os coelhos se esquivavam dos caçadores, em Aurignac (Haute-Garonne) retirou dessa abertura ossos de grande dimensão. Atacando então o flanco do montículo, na esperança de ali encontrar um tesouro, em breve encontrou-se em face de um verdadeiro ossuário. O rumor público apoderando-se do fato e pôs em circulação histórias de moedeiros falsos, de assassinatos, etc. O prefeito julgou conveniente mandar reunir todas as ossadas para levá-las ao cemitério, e quando, em 1860 o Sr. Lartet quis examinar esses velhos restos, o fosseiro nem mais se lembrava do lugar da sepultura. Com o auxílio de raros vestígios que cercam a caverna, traços de um foco, ossos quebrados para extrair a medula, não obstante pode assegurar-se que as três espécies acima referidas viveram nesse ponto da França ao mesmo tempo que o homem. O cão já era companheiro do homem, e sem dúvida foi a sua primeira conquista.

O alimento desses homens primitivos já era muito variado. Pretende um professor que a proporção entre carnívoros e frugívoros era de doze para vinte. O Sr. Flourens prefere acreditar que eles se nutriam exclusivamente de frutos. Mas a verdade é que, desde o começo, o homem foi onívoro. Os kjokkenmoddings da Dinamarca conservaram restos de cozinha antediluviana, provando este fato até a evidência. Eles já almoçavam ostras e peixe, conheciam o ganso, o cisne, o pato; apreciavam o galo selvagem, o cervo, o cabrito montês, a rena, que eles caçavam, e dos quais foram encontrados restos atravessados por flechas de pedra. O urus ou boi primitivo já lhes dava leite; o lobo, a raposa, o cão e o gato lhes serviam de prato de resistência. As bolotas, a cevada, a aveia, as ervilhas, as lentilhas lhes davam o pão e os legumes; o trigo só veio mais tarde. As avelãs, as faias, as batatas, as peras, os morangos e as framboesas terminavam essas refeições dos antigos dinamarqueses. Os suíços da Idade da Pedra eram, além disso, dados à carne do bisão, do alce, do touro selvagem; tinham submetido a cabra e a ovelha ao estado doméstico. A lebre e o coelho eram desdenhados por alguma razão supersticiosa. Mas, em compensação, o cavalo já havia tomado lugar em suas refeições. Todas as carnes eram comidas cruas e fumegantes, inicialmente e, nota curiosa, os antigos dinamarqueses não se serviam, como nós, dos dentes incisivos para cortar, mas para segurar, reter e mastigar o alimento, de sorte que esses dentes não eram cortantes como os nossos, mas achatados, como os nossos molares, e as duas arcadas dentárias fechavam uma sobre a outra, em vez de se encaixar.

Nem todos os selvagens primitivos eram nus. Os primeiros habitantes das latitudes boreais, da Dinamarca, da Gália e da Helvécia, tiveram que se garantir contra o frio com peles e forros. Mais tarde pensaram nos ornamentos. “A coqueteria, o amor ao enfeite não datam de ontem, senhoras: testemunham esses colares formados com dentes de cão, de raposa e de lobo, atravessados por um furo de suspensão. Mais tarde, os grampos para o cabelo, os braceletes, os pegadores de bronze se multiplicaram ao infinito, e é admirável a variedade e até o bom gosto dos objetos que serviam à toalete das senhoritas e dos cortesãos daquele tempo.

Durante essas idades recuadas, enterravam os mortos sob abóbadas sepulcrais. Os cadáveres eram colocados em atitude agachada, os joelhos quase em contacto com o queixo, os braços cruzados sobre o peito e próximos da cabeça. Como se observou, essa é a posição da criança no seio materno. Esses homens primordiais certamente o ignoravam, e é por uma espécie de intuição que assemelhavam o túmulo a um berço.

Vestígios de idades extintas, esses túmulos, esses outeiros, essas colinas que nos séculos passados eram chamados “túmulos de gigantes” e que serviam de limites invioláveis, são câmaras mortuárias, sob as quais nossos antepassados ocultavam seus mortos. Quem eram esses primeiros homens? “Não é apenas por curiosidade, diz Virchow, que perguntamos quem eram esses mortos, se eles pertenciam a uma raça de gigantes, quando viveram. Essas questões nos tocam. Esses mortos são nossos antepassados, e as perguntas que dirigimos a esses túmulos dizem respeito igualmente à nossa origem. De que raça saímos? De que começo saiu a nossa cultura atual e para onde ela nos conduz?”

Não é preciso remontar à criação para receber alguma luz sobre as nossas origens; do contrário ver-nos-íamos condenados a ficar sempre numa noite completa a esse respeito. Apenas sobre a data da criação contaram-se mais de 140 opiniões, e da primeira à última não há menos de 3.194 anos de diferença! Acrescentar uma 141ª hipótese não esclareceria o problema. Assim, limitar-nos-emos a estabelecer que, do ponto de vista geológico, o último período da história da Terra, o período quaternário, e que perdura ainda até hoje, foi dividido em três fases: a fase diluviana, durante a qual houve imensas inundações parciais e vastos depósitos e acumulações de areia; a fase glaciária, caracterizada pela formação de geleiras e por um maior resfriamento do globo; enfim, a fase moderna. Em suma, a importante questão, hoje mais ou menos resolvida, era saber se o homem não data apenas desta última época, ou das precedentes.

Ora, está agora constatado que data ao menos da primeira, e que os nossos primeiros ancestrais têm direito ao título de fósseis, considerando-se que seus esqueletos (o pouco que resta) jazem com os do ursus spelaeus, da hiena e das felis spelaea, do elephas primigenius, do megaceros, etc., numa camada pertencente a uma ordem de vida diferente da ordem atual.

Nessas épocas longínquas reinava uma Natureza muito diferente da que hoje desdobra os seus esplendores em volta de nós; outros tipos de plantas decoravam as florestas e os campos; outras espécies animais viviam na superfície do solo e nos mares. Quais foram os primeiros homens que despertaram nesse mundo primordial? Que cidades foram edificadas? Que língua foi falada? Que costumes estiveram em uso? Estas questões para nós ainda estão cercadas de profundo mistério. Mas, o de que temos certeza, é que ali onde fundamos hoje dinastias e monumentos, várias raças de homens habitaram sucessivamente, durante períodos seculares.

Sir John Lubbock, na obra citada no começo deste estudo, demonstra a ancianidade da raça humana pelas descobertas relativas aos usos e costumes de nossos ancestrais, como Sir Charles Lyell havia demonstrado do ponto de vista geológico. Seja qual for o mistério que ainda envolve as nossas origens, preferimos esse resultado ainda incompleto da ciência positiva, às fábulas e aos romances da antiga mitologia.

CAMILLE FLAMMARION


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(1) Este artigo é tirado dos artigos científicos que o Sr. Flammarion publicou no Siècle. Julgamos dever reproduzi- lo, primeiro porque sabemos o interesse que têm os nossos leitores pelos escritos desse jovem sábio, e, além disto, porque, do ponto de vista da Ciência, ele toca nalguns dos pontos fundamentais da doutrina exposta em nossa obra sobre a Gênese.


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