Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Sem lembrar aqui os inúmeros fenômenos que ressaltam do Espiritismo experimental e provam, com a última evidência, a independência do Espírito e da matéria, chamaremos a atenção para um fato vulgar, do qual não se tem, ao que saibamos, tirado todas as consequências, e que, entretanto, é de natureza a impressionar todo observador sério.

Queremos falar do que se passa no sonambulismo natural ou artificial; nas estranhas faculdades que se desdobram nos catalépticos; no não menos estranho fenômeno da dupla vista, hoje perfeitamente constatado até pelos incrédulos, mas cuja causa não buscaram, posto valesse a pena.

A seguinte carta, que nos dirige distinto médico do Tarn, prova por qual encadeamento de ideias um homem que reflete pode passar da incredulidade à crença, apenas ajudado pelo raciocínio e pela observação feita com boa-fé.

“Senhor,

“Confundido na massa dos dúbios e dos incrédulos, a leitura do Livro dos Espíritos me produziu vivíssima sensação. A suave satisfação que me ficou de sua leitura fez nascer em mim o desejo muito natural de crer, sem restrições, em todos os ensinos dados pelos Espíritos nesse livro.

“A fim de atingir tal objetivo, desejaria constatar por mim mesmo a realidade das comunicações. Assim, esforcei-me por me tornar médium, mas não o consegui e tive que parar as pesquisas. Cansado de viver na minha incerteza, resolvi reportarme às observações alheias. Mas como não sou, por natureza, fácil de ser persuadido, sentia a necessidade de conhecê-las a fim de poder julgar de sua realidade. Depois de percorrer os quatro primeiros anos da Revista Espírita, e sobretudo de haver notado com que precauções os numerosos fatos são ali reportados, e que as manifestações dos Espíritos e suas comunicações são sempre constatadas por pessoas respeitáveis, desinteressadas e fidedignas, não mais é possível conservar qualquer dúvida quanto à sua autenticidade.

“Entretanto, uma vez admitidas as comunicações, eu deveria fazer uma ideia do grau de confiança que se deveria conferir às revelações, sobretudo àquelas que constituem a base da filosofia espírita.

“Nessa apreciação, as chamas do inferno não me poderiam deter, a menos que negasse a bondade infinita de Deus.

“Também a diferença das religiões não criavam obstáculos à minha lógica, visto que semeando o bem, o mais simples bom-senso diz que não se pode colher o mal.

“Restava-me, contudo, o ponto capital da reencarnação. Sobre isso, o sonambulismo me foi uma ajuda valiosa, e se ele não resolve inteiramente o problema, em minha opinião o torna tão provável que se faz necessária forte dose de má vontade para não admiti-lo.

“Para começar, se a existência da alma já não estivesse suficientemente demonstrada pelas manifestações e comunicações dos Espíritos, seria claramente provada pela visão à distância e através dos corpos opacos, que não pode ser explicada senão por seu intermédio. Depois, pondo de lado as faculdades da alma desprendida da matéria, tais como a visão à distância, a transmissão do pensamento, etc., o sonambulismo leva à descoberta no sensitivo de conhecimentos muito mais extensos que os que ele possui no estado de vigília. Disto resulta que a alma deve ser mais antiga que o corpo, porque, se criada ao mesmo tempo que ele, ela não poderia ter conhecimentos além dos adquiridos durante a existência deste último.

“Mas, depois de haver constatado que a alma é mais antiga que o corpo, não se sente nenhuma repugnância em lhe conferir outras encarnações, porque se a existência atual não é o começo, nada prova que seja a última; ao contrário, tornamse muito naturais e até mesmo indispensáveis. Há mais: O sonâmbulo, em estado de vigília, geralmente não tem nenhuma lembrança do que disse ou fez durante o sono, mas, durante o sono, reencontra sem dificuldade tudo quanto fez, não só durante os sonos precedentes, mas também durante a vigília. Não é este o quadro exato da existência da alma em seus numerosos estados errantes e encarnados, com suas lembranças e seu esquecimento?

“Filho do povo, minha instrução, extremamente medíocre e adquirida por mim mesmo, remonta apenas a um terço de minha idade, que é de quarenta e dois anos. Assim, parece-me que uma pena algo mais experimentada faria ressaltar muito mais claramente, a esse propósito, as verdades que tentei descobrir. Contudo, por mais imperfeitas que sejam estas aproximações, elas bastaram para determinar minha convicção, e eu me sentiria feliz se as julgásseis dignas de poder exercer a mesma influência sobre outros.

“Posto minha convicção seja de data muito recente, começou a produzir frutos e, independentemente das felizes modificações trazidas à minha maneira de ser, é para mim a fonte de suaves consolações. Essas mudanças felizes são devidas unicamente ao conhecimento de vossas obras. Assim, senhor, eu vos peço que vos digneis receber o eterno reconhecimento daquele que no futuro deseja ser contado no número dos vossos mais fervorosos adeptos.

“G...”

A visão à distância, as impressões sentidas pelo sonâmbulo, conforme o meio que vai visitar, provam que uma parte de seu ser é transportada. Ora, se não é o seu corpo material, visível, que não mudou de lugar, não pode ser senão o corpo fluídico, invisível e sensível. Não é o mais patente fato da dupla existência corpórea e espiritual?

Mas, sem falar desta singular faculdade, que não é geral, basta observar o que se passa nos mais vulgares sonâmbulos. A dualidade se manifesta de maneira não menos evidente, como observa o nosso correspondente, no fenômeno do esquecimento ao despertar. Não há quem, tendo observado os efeitos magnéticos, não tenha observado a instantaneidade de tal esquecimento. Um sonâmbulo fala e sua conversa é perfeitamente sequencial e racional. Se o despertam de súbito, no meio de uma frase, de uma palavra que ele nem chegou a concluir e lhe perguntam o que acabou de dizer, se lhe relembram a palavra começada, responderá que nada disse.

Se o pensamento fosse produto da matéria cerebral, por que tal esquecimento, se a matéria está sempre lá e é sempre a mesma? Por que basta um instante para mudar o curso das ideias? Mas o que é ainda mais característico, é a relembrança perfeita, num novo sono, daquilo que foi dito e feito num sono precedente, por vezes a um intervalo de um ano. Só este fato provaria que, ao lado da vida do corpo, há a vida da alma, e que a alma pode agir e pensar de maneira independente. Se ela pode manifestar tal independência durante a vida do corpo, cujos entraves sempre sofre mais ou menos, com mais forte razão o pode quando goza de sua inteira liberdade.

As consequências que nosso correspondente tira desses fenômenos para provar a anterioridade da alma e a pluralidade das existências são perfeitamente lógicas.

Os fenômenos sonambúlicos, como tantos outros, parecem trazidos pela Providência para nos pôr na rota dos mistérios do pensamento. A Ciência, entretanto, não se digna considerá-los. Com o propósito de vê-los, ela não desviará os olhos de um pólipo, de um cogumelo, de um filete nervoso. É verdade que a alma não se mostra à ponta de um escalpelo, nem sob as lentes, mas como se julga a causa pelos efeitos, os efeitos da alma, a cada passo, estão sob os vossos olhos e não os olhais. Percorreríeis cem léguas para observar um fenômeno astronômico sem utilidade prática, enquanto só tendes sarcasmos e desdém quando se trata dos fenômenos da alma, que estão ao vosso alcance, e que interessam a toda a Humanidade, em seu presente e no seu futuro.

Se dificilmente a Ciência oficial renuncia a seus preconceitos, seria injusto fazer cair a responsabilidade sobre todos os cientistas. Entre eles manifesta-se um movimento de bom augúrio, em relação às ideias novas. As adesões individuais e tácitas são numerosas, mas, talvez mais que outros, ainda temem pôr-se em evidência. Bastará que algumas sumidades ergam a bandeira, para fazer calar os escrúpulos alheios, impor silêncio aos trocistas de mau gosto e fazer refletirem os agressores interesseiros. É o que não tardaremos a ver.

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