Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

Allan Kardec

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Resposta de uma senhora a um padre sobre o Espiritismo

Comunicam-nos de Bordéus que um padre daquela cidade, a 8 de janeiro, escreveu a carta seguinte a uma senhora muito idosa e muito doente. Estamos formalmente autorizados a publicá-la, bem como a resposta que lhe foi dada.

“Senhora,

“Lamento que ontem não tivesse podido trocar ideias em particular sobre certas práticas religiosas contrárias ao ensino da santa Igreja. Falou-se muito disso em vossa família e mesmo num círculo. Eu me sentiria feliz, senhora, de saber que só tendes desprezo por essas superstições diabólicas e que estais sempre sinceramente ligada aos dogmas invariáveis da religião católica.

“Tenho a honra, etc.

X...”

Resposta,

“Meu caro Sr. Vigário,

“Estando minha mãe muito doente para responder pessoalmente a vossa bondosa carta de 8 do corrente, apresso-me em fazê-lo por ela e de sua parte, a fim de tranquilizar a vossa solicitude quanto aos perigos que ela e sua família podem correr.

“Caro senhor, em minha casa não se faz nenhuma prática religiosa que possa inquietar os mais fervorosos católicos, a menos que o respeito e a fé pelos mortos, a fé na imortalidade da alma, uma confiança ilimitada no amor e na bondade de Deus e uma observância tão rígida quanto o permite a natureza humana das santas doutrinas do Cristo sejam práticas reprováveis pela santa Igreja Católica.

“Quanto ao que possam dizer de minha família, mesmo em um círculo, estou tranquila. Nem lá nem alhures jamais dirão que algum de nós tenha feito coisas das quais tenha que corar ou esconder-se, e eu não coro nem me oculto por admitir o desenvolvimento e a clareza que as manifestações espíritas espalham, para mim e para muitos outros, sobre aquilo que havia de obscuro do ponto de vista de minha inteligência, em tudo quanto parecia sair das leis da Natureza.

A essas superstições diabólicas eu devo a crença sincera, com reconhecimento, em todos os milagres que a Igreja nos dá como artigo de fé e que, até o presente, eu conservava como símbolos, ou antes, confesso-o, como fantasias. Devo-lhes uma quietude de alma que até agora não tinha obtido, por maiores que tivessem sido meus esforços. Devo-lhes a fé, a fé sem limites, sem reflexão, sem comentários, a fé, enfim, tal qual ordena a Igreja aos seus filhos, tal qual o Senhor deve exigir das criaturas, tal qual o divino Salvador pregou pela palavra e pelo exemplo.

“Tranquilizai-vos, pois, caríssimo senhor! O Bom Pastor reuniu em seu redor as ovelhas indiferentes, que o seguiam maquinalmente e por hábito, e que agora o seguem e o seguirão sempre com amor e reconhecimento. O divino Mestre perdoou a São Tomé por não haver acreditado antes de ver. Então! Ainda hoje ele vem fazer que os incrédulos toquem o seu lado e as suas mãos e é com um amor sem nome que os que duvidavam se aproximam para beijar os seus pés sangrentos e agradecer a esse pai bom e misericordioso por permitir que essas verdades imutáveis se tornem palpáveis, a fim de fortalecer os fracos e esclarecer os cegos que se recusavam até a ver a luz que brilha há tantos séculos.

“Permiti, agora, reabilitar a minha mãe aos olhos da santa Igreja. De toda a minha família, meu marido e eu somos os únicos que temos a felicidade de seguir essa via que cada um tem liberdade de julgar do seu ponto de vista. Apresso-me, pois, em vos tranquilizar a tal respeito.

“Quanto a mim, pessoalmente, encontrei muita força e consolo na certeza palpável de que aqueles que nós amamos e que choramos estão sempre perto de nós, pregando o amor de Deus acima de tudo, o amor ao próximo, a caridade sob todas assuas faces, a abnegação, o esquecimento das injúrias, o bem pelo mal (o que, parece, não se afasta dos dogmas da Igreja).

Aconteça o que acontecer aqui em baixo, apego-me àquilo que sei, ao que vi, pedindo a Deus que envie as suas consolações àqueles que, como eu, não ousavam refletir nos mistérios da religião, com receio de que essa pobre razão humana, que não quer admitir senão aquilo que compreende, destruísse as crenças que o hábito me dava um ar de possuir.

“Agradeço, pois, ao Senhor, cuja bondade e poder incontestáveis permitem aos anjos e aos santos agora se tornarem visíveis, para salvarem os homens da dúvida e da negação, o que tinha sido permitido ao demônio fazer para desviá-los do bom caminho, desde a criação do mundo.

“Tudo é possível a Deus, mesmo os milagres. Hoje eu o reconheço com felicidade e confiança.

“Aceitai, caro senhor vigário, meus sinceros agradecimentos pelo interesse que nos testemunhastes e crede que faço votos ardentes para ver entrar em todos os corações a fé e o amor que hoje tenho a felicidade de possuir.

“Recebei, etc.

“ÉMILIE COLLIGNON”



OBSERVAÇÃO: Dispensamo-nos de comentar essa carta, deixando a cada um a tarefa de apreciála. Apenas diremos que conhecemos um grande número delas, no mesmo sentido.

A passagem que se segue, de uma delas, pode resumi-las, se não quanto aos termos, ao menos quanto ao sentido:

“Posto nascida e batizada na religião Católica Apostólica Romana há trinta anos, isto é, desde a primeira comunhão, eu tinha esquecido minhas preces e o caminho da igreja. Numa palavra, não acreditava em nada senão na realidade da vida presente. Por uma graça do Céu, veio, enfim, o Espiritismo abrir-me os olhos. Hoje os fatos me falaram. Não só creio em Deus e na alma, mas na vida futura, feliz ou infeliz; creio num Deus justo e bom, que pune os maus atos e não as crenças erradas.

“Como um mudo que recupera a palavra, recordei-me de minhas preces e oro, não mais com os lábios e sem compreender, mas de coração, com inteligência, fé e amor. Ainda há pouco tempo eu admitia praticar um ato de fraqueza se me aproximasse dos sacramentos da Igreja. Hoje acredito praticar um ato de humildade agradável a Deus em recebê-los. Vós me repelis mesmo do tribunal da penitência.

Antes de mais nada impondes uma retratação formal de minhas crenças espíritas. Quereis que renuncie a conversar com o filho querido que perdi e que me veio dizer palavras tão doces e consoladoras. Quereis que eu declare que essa criança, que reconheci como se estivesse viva em minha frente, é o demônio. Não! Uma mãe não se engana tão grosseiramente.

“Mas, senhor vigário, são as próprias palavras dessa criança que, tendo-me convencido da vida futura, me reconduzem à igreja! Como quereis que eu creia que é o demônio? Se isso tivesse que ser a última palavra da Igreja, a gente perguntará o que acontecerá quando todo o mundo for espírita?

“Estigmatizastes-me do alto da cátedra; apontastes-me com o dedo; levantastes contra mim uma turba fanática; fizestes retirar de uma pobre mulher que compartilha de minhas crenças o trabalho que lhe permitia viver, dizendo que ela teria auxílio se deixasse de me ver, esperando vencê-la pela fome. Francamente, senhor vigário, Jesus Cristo teria feito isso?

“Dizeis agir conforme a vossa consciência. Não temeis que eu cometa uma violência, mas achais bom que eu aja conforme a minha.

“Repelis-me da Igreja. Não tentarei lá voltar à força, porque em toda parte a prece é agradável a Deus.

“Deixai-me apenas historiar as causas que, de há muito, dela me haviam afastado; que fizeram a princípio nascer em mim a dúvida e desta a negação de tudo.

Se agora sou maldita, como pretendeis, vereis a quem cabe a responsabilidade...”

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OBSERVAÇÃO: As reflexões que brotam de semelhantes coisas resumem-se em duas palavras: Fatal imprudência! Fatal cegueira!

Passamos os olhos sobre um manuscrito intitulado “Memórias de um incrédulo. É um curioso relato das causas que conduzem o homem às ideias materialistas e dos meios pelos quais ele pode ser reconduzido à fé. Ainda não sabemos se o autor irá publicá-lo.

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