Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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Sofrem os Espíritos? Que sensações experimentam? Tais perguntas nos são naturalmente dirigidas e procuramos respondê-las. Inicialmente devemos dizer que para tanto não nos contentamos com respostas dos Espíritos. De certo modo tivemos que considerar a sensação como um fato, através de numerosas observações.

Numa de nossas reuniões, pouco depois de havermos recebido de São Luís uma bela dissertação sobre a avareza, cuja publicação foi feita em nosso número de fevereiro, um dos nossos associados contou o fato que se segue, a respeito daquela dissertação.

“Numa pequena reunião de amigos, ocupávamo-nos de evocações quando, inopinadamente e sem que o tivéssemos chamado, apresentou-se um Espírito que havíamos conhecido muito bem, e que em vida poderia ter servido de modelo ao retrato do avarento feito por São Luís: um desses homens que vivem miseravelmente no meio da fortuna; que se privam, não pelos outros, mas para acumular sem proveito para ninguém. Foi no inverno e nós estávamos perto do fogo. De repente aquele Espírito trouxe à nossa lembrança o seu nome, no qual estávamos longe de pensar e nos pediu permissão para vir durante três dias aquecer-se à nossa lareira, dizendo que sentia horrivelmente o frio que voluntariamente suportara durante a vida e que, por avareza, obrigara os outros a suportar. Isto seria um alívio, acrescentou ele, se quiserdes conceder-mo.”

Aquele espírito experimentava penosa sensação de frio. Mas como a experimentava? Nisto é que estava a dificuldade.

A esse respeito, dirigimos a São Luís as perguntas que se seguem.


1. ─ Teríeis a bondade de dizer-nos como esse Espírito de avarento, que não tinha mais o corpo material, podia sentir frio e pedir para se aquecer?

─ Podes imaginar os sofrimentos do Espírito pelos sofrimentos morais.

2. ─ Compreendemos os sofrimentos morais, como pesares, remorsos, vergonha, mas o calor, o frio e a dor física não são efeitos morais. Os Espíritos experimentam esta espécie de sensações?
─ Tua alma sente frio? Não, mas tem a consciência da sensação que age sobre o corpo.

3. ─ Parece disso decorrer que esse Espírito de avarento não sentia um frio real, mas que ele tinha a lembrança da sensação do frio que havia suportado, e essa lembrança, que lhe era como uma realidade, tornava-se um suplício.
─ É mais ou menos isto. Fique bem entendido que há uma distinção, que compreendeis perfeitamente, entre a dor física e a dor moral. Não se deve confundir o efeito com a causa.

─ Se bem compreendemos, poder-se-ia, ao que parece, explicar as coisas do seguinte modo: O corpo é o instrumento da dor. Se não é a causa primeira, é pelo menos a causa imediata. A alma tem a percepção dessa dor. Essa percepção é o efeito. A lembrança que disso conserva pode ser tão penosa quanto a realidade, mas não pode ter ação física. Realmente, nem frio nem calor intensos podem desorganizar-lhe os tecidos. A alma nem pode ficar gelada nem se queimar. Não vemos diariamente a lembrança ou a apreensão de um mal físico produzir o efeito da realidade? Ocasionar até a morte? Todo mundo sabe que pessoas amputadas sentem dor no membro que não existe mais. Certamente esse membro não é nem a sede, nem mesmo o ponto de partida da dor. O cérebro conservou-lhe a impressão, eis tudo. Pode-se pois crer que existe algo de análogo nos sofrimentos do Espírito após a morte. Estas reflexões estão corretas?
4. ─ Sim. Mais tarde compreendereis ainda melhor. Esperai que outros fatos vos forneçam novos pontos de observação. Então podereis tirar conclusões mais completas.

Isto se passava no começo do ano de 1858. Efetivamente, desde então um estudo mais aprofundado do perispírito, que representa um importante papel em todos os fenômenos espíritas e do qual ainda não se havia tomado conhecimento: as aparições vaporosas ou tangíveis; o estado do Espírito no momento da morte; a ideia, tão frequente no Espírito, de que ainda se acha vivo; o quadro impressionante dos suicidas, dos suplicados, dos que se absorveram nos prazeres materiais e tantos outros fatos vieram lançar uma luz sobre esta questão e deram lugar a explicações cujo resumo fazemos a seguir:

O perispírito é o laço que une o Espírito à matéria do corpo; ele é tirado do meio ambiente, do fluido universal; ele tem, simultaneamente, algo da eletricidade, do fluido magnético e, até certo ponto, da matéria inerte. Poder-se-ia dizer que é a quintessência da matéria: é o princípio da vida orgânica, mas não o é da vida intelectual. A vida intelectual está no Espírito. Ele é, além disso, o agente das sensações exteriores. No corpo, essas sensações estão localizadas nos órgãos que lhe servem de canais. Destruído o corpo, as sensações tornam-se gerais. Eis por que o Espírito não diz que sofre mais da cabeça do que dos pés. Além disso, é necessário não confundir as sensações do perispírito, que se tornou independente, com as do corpo. Não podemos tomar estas últimas senão como termo de comparação e não como analogia. Um excesso de calor ou de frio pode desorganizar os tecidos do corpo, entretanto não pode atingir o perispírito. Desprendido do corpo, o Espírito pode sofrer, mas esse sofrimento não é o do corpo. Contudo, não é um sofrimento exclusivamente moral, como o remorso, de vez que ele se queixa de frio ou de calor; ele não sofre mais no inverno do que no verão; vimo-los passar através das chamas sem experimentar nenhum sofrimento. Assim, nenhuma impressão sobre eles pode exercer a temperatura. A dor que sentem não é, pois, uma dor física, propriamente dita. É um vago sentimento íntimo, de que o próprio Espírito nem sempre se dá conta com precisão, porque a dor não é localizada e não é produzida por agentes externos. É mais uma lembrança do que uma realidade, posto seja uma lembrança realmente penosa. Há, entretanto, algo mais que uma lembrança, como passaremos a ver.

Ensina-nos a experiência que no momento da morte o perispírito se desprende mais ou menos lentamente do corpo. Durante os primeiros instantes o Espírito não se dá conta da situação; não se julga morto; sente-se vivo; vê seu o corpo ao lado; sabe que é o dele, mas não compreende que do mesmo esteja separado. Esse estado dura enquanto existe uma ligação entre o corpo e o perispírito.

Recordemos a evocação do suicida da casa de banhos da Samaritana, descrita em nosso número de junho. Como todos os outros, ele dizia: “Não, eu não estou morto.” Mas acrescentava: “Entretanto, sinto que os vermes me roem.” Ora, seguramente os vermes não roem o perispírito e, ainda menos o Espírito. Apenas roem o corpo. Como a separação do corpo e do perispírito não era completa, o resultado era uma espécie de repercussão moral que lhe transmitia a sensação do que acontecia no corpo. Repercussão talvez não seja o vocábulo, o qual poderia fazer supor um efeito muito material. Era antes a visão daquilo que se passava em seu corpo, ao qual estava ligado o seu perispírito, que lhe produzia uma ilusão, que ele tomava como realidade. Assim, não é uma lembrança, pois que em vida não tinha sido roído pelos vermes. Era um sentimento atual.

Vemos por aí as deduções que podem ser tiradas dos fatos, quando observados com atenção. Durante a vida, o corpo recebe impressões exteriores e as transmite ao Espírito, por intermédio do perispírito, que constitui, provavelmente, aquilo que é chamado fluido nervoso. Morto, o corpo não mais sente, porque nele já não há Espírito nem perispírito. Desprendido do corpo, o perispírito experimenta a sensação. Entretanto, como esta não lhe chega através de um canal limitado, é geral. Ora, como na realidade existe apenas um agente transmissor, desde que é o Espírito que tem a consciência, disto resulta que se pudesse existir um perispírito sem Espírito, este não sentiria mais do que o corpo quando morto. Do mesmo modo, se o Espírito não tivesse perispírito, seria inacessível a qualquer sensação dolorosa. É isto o que acontece com os Espíritos completamente depurados. Sabemos que quanto mais se depuram, tanto mais eterizada se torna a essência do perispírito, de onde se segue que a influência material diminui à medida que o Espírito progride, isto é, à medida que o perispírito se torna menos grosseiro.

Dir-se-á, entretanto, que as sensações agradáveis são transmitidas ao Espírito pelo perispírito, assim como as desagradáveis. Ora, se o Espírito puro é inacessível a umas, deve sê-lo igualmente a outras. Sim, sem dúvida, às que provêm unicamente da influência da matéria que conhecemos. O som de nossos instrumentos, o perfume de nossas flores nenhuma impressão lhe causam. Entretanto, há nele sensações íntimas, de um encanto indefinível do qual nenhuma ideia podemos fazer, porque a tal respeito somos como cegos de nascença em relação à luz. Sabemos que isto existe, mas por que meio? Daqui não passam nossos conhecimentos. Sabemos que há percepção, sensação, audição, visão; que essas faculdades são atributos do ser inteiro e não, como no homem, de uma parte do ser. Mas, ainda uma vez, por que meio? Eis o que ignoramos. Os próprios Espíritos não nos podem dar esclarecimentos sobre isso porque nossa linguagem não é apta a exprimir ideias que não possuímos, do mesmo modo que um povo cego não teria palavras para exprimir os efeitos da luz, ou a linguagem dos selvagens, meios para descrever as nossas artes, as nossas ciências e as nossas doutrinas filosóficas.

Dizendo que os Espíritos são inacessíveis às impressões de nossa matéria, queremos referir-nos aos Espíritos muito elevados, cujo envoltório etéreo não tem analogia aqui na Terra. Já o mesmo não se dá com aqueles cujo perispírito é mais denso. Esses percebem os nossos sons, os nossos odores, mas não por uma parte limitada do seu ser, como quando vivos. Poder-se-ia dizer que as vibrações moleculares se fazem sentir em todo o seu ser e assim chegam ao sensorium commune, que é o próprio Espírito, posto que de maneira diferente e talvez mesmo com uma impressão diferente, o que produz uma modificação na percepção. Eles ouvem o som de nossa voz, entretanto nos entendem sem o recurso da palavra, pela simples transmissão do pensamento, o que vem em apoio àquilo que dizíamos, isto é, que tal penetração é tanto mais fácil quanto mais desmaterializado é o Espírito.

Quanto à visão, ela independe da nossa luz. A faculdade de ver é um atributo essencial da alma. Para ela não existe obscuridade. No entanto, ela é mais extensa e penetrante naqueles que são mais depurados. A alma, ou Espírito, tem, pois, em si mesma, a faculdade de todas as percepções. Na vida corpórea estas são obliteradas pela grosseria de nossos órgãos. Na vida extracorpórea são cada vez menos obliteradas, à medida que se depura o envoltório semimaterial.

Tirado do meio ambiente, esse envoltório varia segundo a natureza dos mundos. Passando de um mundo a outro, os Espíritos mudam de envoltório como nós mudamos as roupas ao passar do inverno ao verão, ou do polo ao equador. Quando nos vêm visitar, os Espíritos mais elevados revestem-se, pois, de seu perispírito terrestre e a partir de então suas percepções se operam como nos nossos Espíritos comuns. Mas todos, tanto inferiores como superiores, nem ouvem nem sentem senão aquilo que querem ouvir ou sentir. Sem órgãos sensitivos, podem, à vontade, tornar as suas percepções ativas ou anulá-las. Existe apenas uma coisa que são obrigados a ouvir: os conselhos dos bons Espíritos.

A vista é sempre ativa, mas podem tornar-se reciprocamente invisíveis uns para os outros. Segundo a posição que ocupam, podem ocultar-se dos que lhes são inferiores, mas não dos superiores.

Nos primeiros momentos que se seguem à morte, a visão do Espírito é sempre confusa e perturbada. Torna-se clara à medida que se desprende e pode adquirir a mesma clareza que durante a vida, independentemente de sua penetração através dos corpos para nós opacos. Quanto à sua extensão através do espaço infinito, tanto no passado como no futuro, depende do grau de pureza e de elevação do Espírito.

Dirão que toda esta teoria não é nada animadora. Imaginávamos que uma vez desembaraçados do grosseiro envoltório material, instrumento de nossas dores, não mais sofreríamos. Eis que nos ensinais que sofreremos ainda. De uma ou de outra forma, não haverá menos sofrimento. Ai de nós!

Sim, nós podemos continuar sofrendo, e muito, e por muito tempo, mas também podemos deixar de sofrer, até mesmo a partir do momento em que deixamos a vida corpórea.

Os sofrimentos terrenos são por vezes independentes de nós. Muitos, porém, são consequência de nossa vontade. Remontemos à fonte e veremos que a maior parte deles resultam de causas que poderíamos ter evitado. Quantos males, quantas enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua ambição, numa palavra, às suas paixões?

O homem que tivesse vivido sobriamente; que não tivesse abusado de nada; que sempre tivesse sido simples em seus gostos e modesto nos seus desejos, pouparse-ia a muitas tribulações.

O mesmo se dá com o Espírito. Os sofrimentos que padece são sempre consequência da maneira como viveu na Terra. Certamente não sofrerá mais de gota ou de reumatismo, mas terá outros sofrimentos que não são menores. Vimos que seus sofrimentos são o resultado dos laços que ainda existem entre ele e a matéria; que quanto mais desvinculado da influência da matéria ou, por outras palavras, quanto mais desmaterializado, menos sensações penosas terá. Ora, dele depende libertar-se de tal influência, já nesta vida. Ele possui o livre-arbítrio e, consequentemente, a escolha entre fazer ou deixar de fazer. Que domine as suas paixões animais; que não tenha ódio, inveja, ciúme e orgulho; que não se deixe dominar pelo egoísmo; que purifique sua alma pelos bons sentimentos; que pratique o bem; que não atribua às coisas deste mundo senão a importância que merecem e então, mesmo que ainda esteja em seu envoltório corporal, já estará depurado e desprendido da matéria. Quando deixar esse envoltório, não sofrerá mais sua influência. Os sofrimentos físicos que houver experimentado não lhe deixarão uma lembrança penosa. Não lhe restará nenhuma impressão desagradável, porque elas terão afetado o corpo, mas não o Espírito; será feliz por ter-se libertado e a calma de consciência o livrará de qualquer sofrimento moral.

Interrogamos milhares de Espíritos que pertenceram a todas as camadas da Sociedade e a todas as posições sociais; estudamo-los em todos os períodos de sua vida espírita, desde o momento em que deixaram o corpo; seguimo-los passo a passo nessa vida de além-túmulo, a fim de observar as mudanças neles operadas, nas suas ideias e nas suas sensações. A esse respeito, não foram as criaturas mais vulgares as que ofereceram material menos interessante para estudo. Ora, nós vimos sempre que os sofrimentos dependem da conduta, cujas consequências eles sofrem, e que essa nova existência é fonte de inefável felicidade para aqueles que seguiram o bom caminho, de onde se segue que os que sofrem, sofrem porque o quiseram e que não devem queixar-se senão de si mesmos, quer neste mundo, quer no outro.

Certos críticos ridicularizaram algumas das nossas evocações, como, por exemplo, a do assassino Lemaire[1], achando estranho que nos ocupássemos de seres tão ignóbeis, quando temos tantos Espíritos superiores à nossa disposição. Esquecem que é exatamente por isto que, de certo modo, apuramos a natureza do fato ou, melhor dizendo, em sua ignorância da ciência espírita, não veem nesses diálogos mais que uma conversa mais ou menos divertida, cujo alcance não compreendem.

Lemos algures que um filósofo dizia, depois de haver conversado com um camponês: “Aprendi mais com esse rústico do que com todos os sábios.” É que ele podia ver além da superfície. Para o bom observador nada é perdido. Ele encontra ensinamentos úteis até no criptógramo que cresce nas esterqueiras. Recusa-se o médico a tocar numa ferida horrenda quando se trata de encontrar a causa de um mal?

Ainda uma palavra sobre o assunto. Os sofrimentos de além-túmulo têm um termo. Sabemos que aos mais inferiores Espíritos é permitido elevar-se e purificar-se por novas provas. Isto pode ser demorado, muito demorado, mas dele depende abreviar esse tempo penoso, porque Deus o escuta sempre, desde que se submeta à sua vontade. Quanto mais desmaterializado é o Espírito, mais vastas e lúcidas são as suas percepções; quanto mais se acha sob o império da matéria, o que depende inteiramente do seu gênero de vida terrena, mais limitadas e veladas serão elas. Quanto mais a visão moral de um se estende para o infinito, tanto mais a do outro se restringe.

Assim, pois, os Espíritos inferiores têm apenas uma noção vaga, confusa, incompleta e por vezes nula do futuro. Eles não veem o termo de seus sofrimentos e por isso pensam sofrer eternamente, o que é para eles um castigo. Se a posição de uns é aflitiva, terrível mesmo, não é, entretanto, desesperadora; a dos outros é, porém, eminentemente consoladora. A nós, pois, cabe escolher. Isto é da mais alta moralidade.

Os cépticos duvidam da sorte que nos aguarda após a morte. Nós lhes mostramos exatamente o que acontece, com o que julgamos prestar-lhes um serviço. Assim, vimos mais de um voltar atrás de seu erro ou, pelo menos, começar a refletir sobre aquilo de que antes fazia troça.

Nada como nos darmos conta da possibilidade das coisas. Se sempre tivesse sido assim, não haveria tantos incrédulos, e tanto a religião como a moral pública ganhariam com isso. Para muitos a dúvida religiosa provém da dificuldade de compreenderem certas coisas. São Espíritos positivos não predispostos à fé cega, que só admitem aquilo que para eles tem uma razão de ser. Tornai essas coisas acessíveis à sua inteligência e eles as aceitarão, porque, no fundo, não pedem mais do que isso a fim de crerem e porque a dúvida lhes é uma situação mais penosa do que imaginamos ou do que eles ousam confessar.

Em tudo quanto dissemos não há um sistema ou ideias pessoais. Também não foram alguns Espíritos privilegiados que nos ditaram esta teoria. Ela é resultado de estudos feitos sobre individualidades, corroborados e confirmados por Espíritos cuja linguagem nenhuma dúvida pode deixar quanto à sua superioridade. Julgamo-los por suas palavras e não por seu nome ou pelo nome que podem atribuir-se.



[1] Vide Revista Espírita nº 1.

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