Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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A floresta de Dodona e a estátua de Memnon.

Para chegar à floresta de Dodona passamos pela Rua Lamartine e paramos um instante em casa da Sra. B. . ., onde vimos um móvel dócil propor-nos um novo problema de estática.

Os assistentes, em qualquer número, colocavam-se em volta da mesa em questão, numa ordem também qualquer, pois ali nem há números nem lugares cabalísticos; as mãos apoiam-se à borda da mesa; mentalmente, ou em voz alta, fazem apelo aos Espíritos que costumam vir a seu convite. É conhecida nossa opinião a respeito desse gênero de Espíritos, razão por que os tratamos um tanto sem cerimônia. Quatro ou cinco minutos apenas são decorridos e um ruído claro de toc, toc se faz ouvir na mesa, por vezes bastante forte a ponto de ser ouvido na sala vizinha; repete-se tanto tempo e tantas vezes quanto se queira. A vibração é sentida nos dedos, e aplicando-se o ouvido à mesa — o que não se deve esquecer — reconhece-se que o ruído, sem engano possível, se origina na substância mesma da madeira, pois toda a mesa vibra, dos pés ao tampo.

Qual a causa desse ruído? É a madeira que estala ou, como se costuma dizer, um Espírito? Afastemos, inicialmente, qualquer ideia de fraude, pois encontramonos em casa de gente séria e de boa companhia, incapaz de se divertir à custa daqueles que recebem de boa vontade. Aliás, essa casa não é privilegiada. Os mesmos fatos se reproduzem em muitas outras, igualmente honestas. Permitam-nos, entretanto, antes da resposta, uma pequena digressão.

Um jovem bacharelando estava em seu quarto, estudando pontos do exame de Retórica, quando bateram à porta. Penso que todos admitem ser possível distinguir a natureza do ruído, e sobretudo na sua repetição, se é causado por um estalo da madeira, pela agitação do vento ou por qualquer outra causa fortuita, ou se é alguém que bate, querendo entrar. Neste último caso o ruído tem um caráter intencional, que não pode ser confundido. É o que pensa o nosso estudante. Entretanto, para não se incomodar inutilmente, quis certificar-se, pondo à prova o visitante. Se for alguém, diz ele, bata uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes; bata no alto, em baixo, à direita ou à esquerda; bata o compasso musical; bata a chamada militar, etc., e a cada um desses pedidos, o ruído obedece com a mais perfeita exatidão. Com certeza, pensa ele, não pode ser o estalo da madeira, nem o vento, nem mesmo um gato, por mais inteligente que seja. Eis um fato. Vejamos a que consequências seremos conduzidos pelos argumentos silogísticos.

Assim, ele fez o seguinte raciocínio: Ouço um barulho, logo, é alguma coisa que o produz. Esse barulho obedece às minhas ordens, portanto, a causa que o produz me compreende. Ora, o que compreende tem inteligência, portanto a causa desse barulho é inteligente. Se é inteligente, não é a madeira nem o vento; se, pois, não é a madeira nem o vento, é alguém. Então foi abrir a porta. Vejamos que não é preciso ser doutor para chegar a esta conclusão e julgamos nosso futuro bacharel suficientemente aferrado aos seus princípios para concluir do seguinte modo:

Suponhamos que ao abrir a porta ele não encontre ninguém, e que o barulho continue exatamente como antes. Ele seguira o seu sorites[1]: “Acabo de provar a mim mesmo, sem contestação, que o barulho é produzido por um ser inteligente, uma vez que responde ao meu pensamento. Ouço sempre esse barulho à minha frente e é certo que não sou eu quem bate, portanto, é um outro. Ora, se esse outro eu não vejo, claro que ele é invisível. Os seres corporais que pertencem à humanidade são perfeitamente visíveis. Este que bate, sendo invisível, não é um ser humano corpóreo. Ora, desde que chamamos Espíritos aos seres incorpóreos, aquele que bate, não sendo corpóreo, é pois um Espírito”.

Julgamos perfeitamente lógicas as conclusões do nosso estudante. Apenas, aquilo que nós demos como suposição é uma realidade, no tocante às experiências que se faziam em casa da Sra. B. . . Diremos mais, que era desnecessária a imposição das mãos, e que todos os fenômenos se produzem igualmente bem, com a mesa livre de qualquer contato. Assim, conforme o desejo expresso, as batidas eram dadas na mesa, na parede, na porta e em outros lugares designados verbal ou mentalmente. Eles indicavam a hora e o número de pessoas presentes; batiam o avanço e a chamada militares, assim como o compasso de uma música conhecida; imitavam o trabalho do toneleiro, o ruído da serra, o eco, as descargas de patrulhas ou de pelotões, e outros efeitos que seria longo descrever. Contaram-nos que em certos círculos ouvia-se a imitação do sibilar do vento, o ciciar das folhas, o estrondo do trovão, o marulho das vagas, o que nada tem de surpreendente. A inteligência da causa tornava-se patente quando, por meio desses golpes, eram obtidas respostas categóricas a certas perguntas. Ora, é a esta causa inteligente que chamamos ou, melhor dizendo, que ela mesma se chamou Espírito. Quando esse Espírito queria dar uma comunicação mais desenvolvida, indicava, por um sinal particular, que queria escrever; então o médium escrevente tomava o lápis e transmitia seu pensamento por escrito.

Entre os assistentes, não falando dos que estavam em volta da mesa, mas de todas as pessoas que enchiam o salão, havia incrédulos autênticos, meio crentes e crentes fervorosos que, como se sabe, constituem uma mistura pouco favorável. Os primeiros, nós os deixamos à vontade, esperando que a luz se faça para eles. Respeitamos todas as crenças, mesmo a incredulidade, que constitui uma espécie de crença, quando essa se respeita suficientemente para não chocar as opiniões contrárias. Assim, pois, não diremos que suas observações sejam destituídas de utilidade. Seu raciocínio, muito menos prolixo que o do nosso estudante, geralmente pode ser assim resumido: Eu não creio em Espíritos, portanto, não podem ser Espíritos, e como não são Espíritos, é um truque. Tal suposição os leva a admitir que a mesa teria um maquinismo, à maneira de Robert Houdin. Nossa resposta a isso é muito simples: primeiro, seria preciso que todas as mesas e todos os móveis tivessem maquinismos, uma vez que não os há privilegiados; segundo, não se conhece qualquer mecanismo suficientemente engenhoso para produzir à vontade todos os efeitos que acabamos de descrever; em terceiro lugar, seria necessário que a Sra. B. . . tivesse preparado propositalmente paredes e portas de seu apartamento, o que é pouco provável; em quarto lugar, enfim, teria sido necessário preparar ainda as mesas, as portas, as paredes de todas as casas onde semelhantes fenômenos se produzem diariamente, o que também não é de presumir-se, porque então seria conhecido o hábil construtor de tantas maravilhas.

Os meio crentes admitem todos os fenômenos, mas estão indecisos quanto à sua causa. Nós os mandamos de volta aos argumentos do nosso futuro bacharel.

Os crentes apresentam três nuanças bem características.

Há os que nas experiências não veem mais que um divertimento e um passatempo, e cuja admiração se traduz por estas e outras expressões: É admirável! É singular! É engraçado! Mas não vão além disso. A seguir vêm os sérios, instruídos, observadores, a quem nenhum detalhe escapa e para os quais as menores coisas constituem material para estudo. Vêm por fim os ultra-crentes, se assim os podemos chamar ou, melhor dito, os de crença cega, que podem ser censurados por seu excesso de credulidade; desde que sua fé não é suficientemente esclarecida, têm uma tal confiança nos Espíritos, que lhes admitem um completo conhecimento e sobretudo a presciência. Assim, é de boa-fé que fazem perguntas sobre todos os assuntos, sem pensar que teriam tido as mesmas respostas do primeiro cartomante a quem pagassem. Para esses, a mesa falante não é objeto de estudo e de observação; é um oráculo. Contra isso há apenas a forma trivial e os seus usos vulgares. Mas se a madeira de que ela é feita, em vez de ser trabalhada para as necessidades domésticas, estivesse de pé, teríamos uma árvore falante; se nela fosse esculpida uma estátua, teríamos um ídolo, ante o qual viriam prostrar-se as pessoas crédulas.

Agora transponhamos os mares e vinte e cinco séculos, transportando-nos ao pé do monte Taurus, no Épiro. Ali encontraremos a floresta sagrada, cujos carvalhos proferiam oráculos. Acrescentemos o prestígio do culto e a pompa das cerimônias religiosas e facilmente teremos a explicação da veneração de um povo ignorante e crédulo, incapaz de ver a realidade através de tantos meios de fascinação.

A madeira não é a única substância que pode servir de veículo à manifestação dos Espíritos batedores. Vimo-la produzir-se em muros e, por conseguinte, na pedra. Temos assim, pois, as pedras falantes. Se essas pedras representam um personagem sagrado, temos a estátua de Memnon ou a de Júpiter Amon proferindo oráculos como as árvores de Dodona.

É verdade que a História não nos diz que esses oráculos eram proferidos por pancadas, como em nossos dias. Na floresta de Dodona era pelo sibilar do vento através das árvores, pelo ciciar das folhas ou pelo murmúrio da fonte que brotava ao pé do sagrado carvalho de Júpiter. Diz-se que a estátua de Memnon emitia sons melodiosos aos primeiros raios do sol. Mas também nos diz a História, como teremos oportunidade de demonstrar, que os antigos conheciam perfeitamente os fenômenos atribuídos aos Espíritos batedores. Ninguém duvide que nisso esteja o princípio de sua crença na existência de seres animados nas árvores, nas pedras, nas águas, etc. Mas, desde que tal gênero de manifestação foi explorado, as batidas já não bastavam; eram muito numerosos os visitantes, para que a cada um se oferecesse uma sessão particular; aliás, teria sido muito simples: era necessário o prestígio e, desde que enriqueciam o templo com suas oferendas, essas despesas deviam ser cobertas. O essencial era que o objeto fosse olhado como sagrado e habitado por uma divindade. Nestas condições, era possível fazê-lo dizer aquilo que se quisesse, sem necessidade de tantas precauções.

Os sacerdotes de Memnon, ao que se diz, empregavam fraudes: a estátua era oca e os sons que emitia eram produzidos por processos acústicos. Isto é possível e mesmo provável. Os próprios Espíritos batedores, que em geral são menos escrupulosos que os outros, não estão sempre, como já o dissemos, à disposição do primeiro que chega. Eles têm sua vontade, suas ocupações, suas susceptibilidades e nem uns nem outros gostam de ser explorados pela cupidez. Que descrédito para os sacerdotes se o seu ídolo não falasse convenientemente! Também era necessário suprir o seu silêncio e, se fosse necessário, dar uma ajuda. Aliás era muito mais cômodo não ter tantas apoquentações, bastando formular a resposta conforme as circunstâncias. O que vemos hoje prova que, apesar de tudo isto, as crenças antigas tinham por princípio o conhecimento das manifestações espíritas, razão por que dissemos que o Espiritismo moderno é o despertar da antiguidade, mas da antiguidade esclarecida pelas luzes da civilização e da realidade.

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