Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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Reflexões sobre as cartas precedentes

Talvez isto se deva à falta de perspicácia de nossa inteligência, mas confessamos com toda a humildade não estar mais esclarecido que antes; diremos mesmo que as explicações acima vêm confirmar nossa opinião. Tinham-nos dito que o autor do projeto tinha um programa bem definido, mas se reservava para dá-lo a conhecer quando as adesões fossem suficientes. Esta maneira de proceder não nos parece nem lógica nem prática, porque, racionalmente, não se pode aderir ao que não se conhece. Ora, a carta que o Sr. Macé teve a bondade de nos escrever não nos dá absolutamente a entender que seja assim. Ao contrário, ela diz: “Cada grupo necessariamente terá que fazer seu próprio programa, o que significa que o autor não tem um de sua própria autoria. Disso resulta que se houver mil grupos, pode haver mil programas. É a porta aberta à anarquia dos sistemas.

É verdade que ele acrescenta que o ponto capital é precisado da maneira mais clara e mais límpida pela indicação do objetivo, que é: “Fazer instrução pura e simples, isenta de qualquer preocupação de seita e de partido.” O fim é louvável, sem dúvida, mas apenas vemos aí uma boa intenção e não a indispensável precisão das coisas práticas.

Acrescenta ele: “Todo círculo que viesse a infringi-lo sairia de pleno direito da Liga.” Eis a medida cominatória. Pois bem! Esses círculos serão livres para sair da Liga, e para formar outras ao lado, sem julgar ter desmerecido fosse no que fosse. Eis então a Liga principal rompida desde seu início, por falta de unidade de vistas e de conjunto. O objetivo indicado é tão geral que se presta a um erro de aplicações muito contraditórias e que, interpretando cada um conforme suas opiniões pessoais, julgará estar certo. Aliás, onde a autoridade que legalmente pode pronunciar essa exclusão? Ela não existe. Não há nenhum centro regulador com qualidade para apreciar ou controlar os programas individuais que se afastassem do plano geral. Sendo cada grupo sua própria autoridade e seu centro de ação, é ele o único juiz do que ele mesmo faz. Em tais condições, cremos impossível um entendimento.

Até aqui só vemos nesse projeto uma ideia geral. Ora, uma ideia não é um programa. Um programa é uma linha traçada, da qual ninguém pode afastar-se conscientemente, um plano fixado nos mais minuciosos detalhes, e que nada deixa ao arbítrio, onde todas as dificuldades de execução estão previstas, onde as vias e meios são indicados. O melhor programa é o que deixa o menos possível o imprevisto.

Diz o autor: “Era-me mesmo impossível algo precisar, porque a medida de ação de cada grupo será necessariamente determinada por seus meios de ação.” Em outros termos, pelos recursos materiais de que poderá dispor. Mas isto não é uma razão. Todos os dias fazem-se planos, elaboram-se projetos subordinados aos meios eventuais de execução. É só vendo um plano que o público se decide a associar-se a ele, conforme compreenda a sua utilidade e nele veja elementos de sucesso.

O que, antes de tudo, teria sido preciso fazer, era assinalar com precisão as lacunas do ensino que se propõe preencher, as necessidades que se quer prover. Seria preciso dizer se se pretendia favorecer a gratuidade do ensino, retribuindo ou indenizando professores e professoras; fundar escolas onde elas não existem; suprir a insuficiência do material de instrução nas escolas muito pobres para dele se prover; fornecer livros às crianças que não podem comprá-los; instituir prêmios de encorajamento para os alunos e professores; criar cursos para adultos; pagar homens de talento para irem, como missionários, fazer conferências instrutivas no campo, e ali destruírem as ideias supersticiosas, com auxílio da Ciência; definir o objetivo e o espírito desses cursos e dessas conferências, etc., essas e outras coisas. Só então o objetivo teria sido claramente especificado. Depois, ter-se-ia dito:

“Para atingi-lo são necessários recursos materiais. Apelamos aos homens de boa vontade, aos amigos do progresso, àqueles que simpatizam com nossas ideias, que formem comitês por departamentos, bairros, cantões ou comunas, encarregados de recolher subscrições. Não haverá caixa geral e central; cada comitê terá a sua, cujo emprego gerenciará conforme o programa traçado, em razão dos recursos de que poderá dispor; se recolher muito, fará muito; se recolher pouco fará menos. Mas haverá um comitê diretor, encarregado de centralizar as informações, de transmitir os avisos e as instruções necessárias, de resolver as dificuldades que possam surgir, de imprimir ao conjunto o cunho de unidade, sem o qual a liga será uma palavra vã. Por uma liga entende-se uma associação de indivíduos marchando de comum acordo e solidariamente para a realização de um objetivo determinado. Ora, desde o instante que cada um pode entender esse objetivo à sua maneira, e agir ao seu bel-prazer, não há mais liga nem associação.

Aqui não se trata apenas de um fim a atingir. Desde o instante que sua realização repousa em capitais a recolher por meio de subscrições, há combinação financeira; a parte econômica do projeto não pode ser deixada ao capricho dos indivíduos, nem ao acaso dos acontecimentos, sob pena de periclitar; ela requer uma séria elaboração prévia, um plano concebido com previdência na previsão de todas as eventualidades.

Um ponto essencial no qual parece não terem pensado, é este:

Sendo permanente o fim proposto, e não temporário, como quando se trata de um infortúnio a aliviar, ou de um monumento a erguer, ele exige recursos permanentes. Provando a experiência que jamais se pode contar com subscrições voluntárias regulares e perpétuas, se se operasse diretamente com o produto das subscrições, este logo seria absorvido. Se quiserem que a operação não sofra solução de continuidade em sua própria fonte, é necessário constituir um rendimento, para não viver do seu capital. Por consequência, capitalizar as subscrições da mais segura maneira e da mais produtiva. Como? Com que garantia e sob que controle? Eis o que todo projetoque repousa sobre um movimento de capitais deve prever antes de tudo e determinar antes de recolher qualquer coisa no caixa, como deve igualmente determinar o emprego e a repartição dos fundos colhidos por antecipação, no caso em que, por uma causa qualquer, não houvesse continuidade. Por sua natureza, o projeto comporta uma parte econômica tanto mais importante pelo fato de depender dela seu futuro, e que aqui absolutamente não existe.

Suponhamos que antes do estabelecimento das sociedades de seguros, um homem tivesse dito: “Os incêndios fazem devastações diárias; tenho pensado que, associando-se e quotizando-se, seria possível atenuar os efeitos do flagelo. Como? Não sei. Façam suas subscrições, para começar, e depois nós avisaremos; vós mesmos procurareis o meio que melhor vos convier e tratareis de vos entenderdes.” Sem dúvida a ideia teria sorrido a muitos. Mas quando se tivessem posto à obra, com quantas dificuldades práticas não teriam se chocado, por não terem tido uma base previamente elaborada! Parece-nos que aqui o caso é mais ou menos o mesmo.

A carta publicada nos Annales du travail e transcrita acima, não elucida melhor a questão; ela confirma que o plano e a execução do projeto são deixados ao árbitro e à iniciativa dos subscritores. Ora, quando a iniciativa é deixada a todos, ninguém a toma. Ademais, se os homens têm bastante raciocínio para analisar se o que lhes oferecem é bom ou mau, nem todos estão aptos a elaborar uma ideia, sobretudo quando ela abarca um campo tão vasto quanto este. Essa elaboração é o complemento indispensável da ideia primitiva. Uma liga é um corpo organizado, que deve ter um regulamento e estatutos, para marchar em conjunto, se ela quiser chegar a um resultado. Se o Sr. Macé tivesse estabelecido estatutos, mesmo provisórios, sujeitos a apreciação e aprovação posterior dos subscritores, que teriam a liberdade de modificá-los, como se pratica em todas as associações, ele teria dado um corpo à Liga, um ponto de ligação, ao passo que ela não tem nem um nem outra. Dizemos mesmo que ela não tem bandeira, porquanto é dito na carta acima mencionada: A liga nada ensinará e não terá direção a dar; é, pois, supérfluo inquietar-se desde já com as opiniões mais ou menos liberais daquele que procura fundá-la. Conceberíamos tal raciocínio se se tratasse de uma operação industrial; mas numa questão tão delicada quanto o ensino, que é encarado sob pontos de vista tão controvertidos, que toca os mais graves interesses da ordem social, não compreendemos que possa ser feita abstração da opinião daquele que, a título de fundador, deve ser a alma do empreendimento. Tal asserção é um erro lamentável.

Do vazio que reina na economia do projeto, resulta que, subscrevendo-o, ninguém sabe a que, nem por que se empenha, pois não sabe que direção tomará o grupo do qual ele fará parte; encontrar-se-ão até subscritores sem participar de qualquer grupo. A organização desses grupos nem mesmo é determinada; suas circunscrições, suas atribuições, sua esfera de atividade, tudo é desconhecido. Ninguém tem qualidade para convocá-los; contrariamente ao que se pratica em casos semelhantes, nenhum comitê de fiscalização é instituído para regular e controlar o emprego dos fundos angariados por antecipação e que servem para pagar as despesas de propaganda da ideia. Considerando-se que há gastos gerais pagos com os fundos dos subscritores, seria preciso que estes soubessem em que consistem. O autor lhes quer deixar toda a latitude para se organizarem como bem entenderem; ele quer ser apenas o promotor da ideia. Que assim seja, e longe de nós o pensamento de levantar contra a sua pessoa a menor suspeita ou desconfiança. Entretanto, dizemos que para a marcha regular de uma operação deste gênero e para lhe garantir o sucesso, há medidas preliminares indispensáveis, que foram totalmente negligenciadas, o que vemos com pesar, no próprio interesse da causa. Se for de propósito, julgamos mal fundado o pensamento; se for por esquecimento, é desagradável.

Não temos qualidades para dar qualquer conselho nesta questão, mas eis como geralmente se procede em semelhantes casos.

Quando o autor de um projeto que necessita de um apelo à confiança pública não quer assumir sozinho a responsabilidade da execução e, também, com o objetivo de cercar-se de mais luzes, inicialmente ele reúne ao seu redor um certo número de pessoas cujos nomes sejam uma recomendação, que se associam à ideia e a elaboram com ele. Essas pessoas constituem um primeiro comitê, quer consultivo, quer cooperativo, provisório até à constituição definitiva da operação e à nomeação de um permanente conselho fiscal pelos interessados. Tal comitê é para estes últimos uma garantia, pelo controle que exerce sobre as primeiras operações, das quais é encarregado de prestar contas, bem como das primeiras despesas. É, além disso, um apoio e uma descarga de responsabilidade para o fundador. Este, falando em seu nome, e esteado no conselho de vários, encontra nessa autoridade coletiva uma força moral sempre mais preponderante sobre a opinião das massas do que a autoridade de um só. Se se tivesse procedido assim para a Liga do ensino, e se o projeto tivesse sido apresentado nas formas usuais e em condições mais práticas, sem dúvida alguma os aderentes teriam sido mais numerosos. Mas tal como está, pensamos que ela deixa muitos indecisos.

Embora o projeto esteja entregue à publicidade e, por consequência, ao livre exame de cada um, dele não teríamos falado se não tivéssemos sido, de certa forma, obrigado, pelos pedidos que nos foram dirigidos. Em princípio, sobre as coisas às quais, do nosso ponto de vista, não podemos dar uma inteira aprovação, preferimos guardar silêncio, a fim de não trazer-lhe nenhum entrave. Tendo-nos sido pedidas novas explicações a propósito de nosso último artigo, julgamos necessário motivar nossa maneira de ver com maior precisão. Mas, ainda uma vez, apenas damos nossa opinião, que não compromete ninguém. Ficaríamos feliz se fôssemos o único de nossa opinião e que o êxito viesse provar que nos enganamos. Associamo-nos de boa vontade à ideia matriz, mas não ao seu modo de execução.

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