Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Allan Kardec

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Lembranças retrospectivas de um Espírito

(Comunicação espontânea - Tulle, 26 de fevereiro de 1866 - Médium: Sr. Leymarie)

Sabeis, amigos, de que lugar é datada minha comunicação? De uma garganta perdida, onde as casas disputaram suas fiadas às dificuldades acumuladas pela criação. Sobre o declive de colinas quase a pique, serpenteiam ruas trepadas, ou antes penduradas nos flancos dos rochedos. Pobres moradas que abrigaram muitas gerações; em cima dos telhados se acham os jardins, onde os pássaros cantam a sua prece. Quando as primeiras flores anunciam os belos dias cheios de ar e de sol, essa música parece sair das camadas aéreas, e o habitante que dobra e trabalha o ferro, a usina e seu ruído dissonante casam seu ritmo áspero e barulhento à harmonia dos pequenos artistas do bom Deus.

Mas acima dessas casas deterioradas, acavaladas, originais, deslocadas, existem altas montanhas com uma verdura sem par; a cada passo, o passante vê alargar-se o horizonte; as aldeias, as igrejas parecem sair do abismo, e esse panorama estranho, selvagem, mutável, se perde ao longe, dominado por montanhas de cabeças embranquecidas pelas neves.

Mas eu esquecia: sem dúvida deveis perceber uma fita prateada, clara, caprichosa, transparente como um espelho: é a Corrèze. Ora encaixada entre rochedos, é silenciosa e grave; ora se escapa alegre, risonha, através dos prados, dos salgueiros e dos olmeiros, oferecendo sua taça aos lábios de numerosos rebanhos, e sua transparência benfazeja às brincadeiras dos banhistas; ela purifica a cidade, que divide graciosamente.

Eu amo este rincão com suas velhas moradas, seu gigantesco campanário, sua ribeira, seu ruído, sua coroa de castanheiros; eu o amo porque ali nasci, porque tudo o que narro ao vosso espírito benevolente faz parte das lembranças de minha última encarnação. Parentes amados, amigos sinceros sempre me cercaram de ternos cuidados; ajudaram no meu adiantamento espiritual. Chegado às grandezas, eu lhes devia meus sentimentos fraternos; meus trabalhos os honravam, e quando venho como Espírito visitar a cidade de minha infância, não me posso impedir de subir ao Puy-Saint-Clair, a última morada dos cidadãos de Tulle, saudar os restos terrenos dos Espíritos amados.

Estranha fantasia! O cemitério está a quinhentos pés acima da cidade; em volta, o horizonte infinito. A gente está só entre a Natureza, seus prestígios e Deus, o rei de todas as grandezas, de todas as esperanças. Nossos avós tinham querido aproximar os mortos amados de sua verdadeira morada, para lhes dizer: Espíritos, desprendei-vos! O ar ambiente vos chama. Saí resplendentes de vossa prisão, a fim de que o espetáculo encantador deste horizonte imenso vos prepare para as maravilhas que fostes chamados a contemplar. Se tiveram tal pensamento, eu o aprovo, porque a morte não é tão lúgubre quanto querem pintá-la. Ela não é, para os espíritas, a verdadeira vida, a separação desejada, a bem-vinda do exilado nos grupos da erraticidade, onde ele vem estudar, aprender e preparar-se para novas provas?

Em alguns anos, em vez de gemer, de cobrir-se de luto, será uma festa para os Espíritos encarnados essa separação, quando o morto tiver cumprido os seus deveres espíritas em toda a acepção da palavra; mas chorarão, gemerão pelo terrícola egoísta que jamais praticou a caridade, a fraternidade, todas as virtudes, todos os deveres tão bem definidos no Livro dos Espíritos.

Depois de ter falado dos mortos, me permitis falar dos vivos? Eu me ligo muito a todas as esperanças, e meu país, onde há tanto a fazer, bem merece votos sinceros.

O progresso, esse nivelador inflexível, é lento, é verdade, para implantar-se nas regiões montanhosas, mas ele sabe impregnar-se tempestivamente nos hábitos, nos costumes; ele afasta uma a uma as oposições, para deixar entrever, enfim, clarões novos para esses párias do trabalho, cujo corpo, sempre vergado sobre uma terra ingrata, é tão rude quanto o traçado dos sulcos.

A natureza vigorosa desses bravos habitantes espera a redenção espiritual. Eles não sabem o que é pensar, julgar corretamente e utilizar todos os recursos do espírito; só o interesse os domina em toda a sua rudeza e o alimento pesado e comum se presta a essa esterilidade do espírito. Vivendo afastados do ruído da política, das descobertas científicas, eles são como bois, ignorantes de sua força, prontos a aceitar o jugo, e tangidos pelo aguilhão, vão à missa, ao cabaré, à aldeia, não por interesse mas por hábito, dormindo durante as prédicas, saltando aos sons dissonantes de uma gaita, soltando gritos insensatos e obedecendo brutalmente aos movimentos da carne.

O padre se abstém judiciosamente de mudar esses velhos usos e costumes; ele fala da fé, dos mistérios, da paixão, do diabo sempre, e essa mistura incoerente acha um eco sem harmonia nas cabeças dessa brava gente que faz votos, peregrinações com os pés descalços e se entrega aos mais estranhos costumes supersticiosos.

Assim, quando uma criança é doentia, pouco aberta, sem inteligência, logo a levam a uma aldeia chamada São Pao (dizei São Paulo); para começar, ela é mergulhada numa água privilegiada, mas pela qual se paga; depois fazem-na sentar-se numa bigorna benta, e um ferreiro, munido de um pesado martelo, bate vigorosamente na bigorna; dizem que a comoção experimentada pelos golpes repetidos cura infalivelmente o paciente. Chamam a isso: fazer São Pao forjar. As mulheres que sofrem do baço também vão banhar-se na água milagrosa e se fazer forjar. Julgai por este exemplo em cem o que é o ensino dos vigários dessa região.

Entretanto, tomai esse bruto e falai de interesse; logo o camponês astucioso, prudente como um selvagem, se defende com aprumo e vence os mais astutos juízes. Fazei um pouco de luz em seu cérebro, ensinai-lhe os primeiros elementos das ciências, e tereis homens verdadeiros, fortes de saúde, espíritos viris e cheios de boa vontade. Que as estradas de ferro cruzem a região e logo tereis um solo copioso com vinho, frutos deliciosos, grão escolhido, trufa perfumada, castanhas selecionadas, a vide ou o cogumelo sem igual, bosques magníficos, minas de carvão inesgotáveis, ferro, cobre, gado de primeira classe, ar, verdura, paisagens esplêndidas.

E quando tantas esperanças apenas se querem espalhar, quando tantas outras regiões estão, como esta, numa prostração mortal, queiramos que, em todos os corações, em todos os recantos perdidos deste mundo, penetre O Livro dos Espíritos. A doutrina que ele encerra é a única que pode mudar o espírito das populações, arrancando-as à pressão absurda dos que ignoram as grandes leis da erraticidade, e que querem imobilizar a crença humana num dédalo onde eles próprios têm tanto trabalho em se reconhecer. Trabalhemos, pois, todos com ardor nesta renovação desejada que deve derrubar todas as barreiras e criar o fim prometido à geração que em breve virá.

BALUZE

OBSERVAÇÃO: O nome de Baluze é conhecido dos leitores pelas excelentes comunicações que por vezes ele dita ao seu compatriota e médium predileto, o Sr. Leymarie. Foi durante uma viagem deste último à sua terra que ele lhe deu a comunicação acima. Baluze, ilustre historiógrafo, nascido em Tulle em 1630, falecido em Paris em 1718, publicou grande número de obras apreciadas; foi bibliotecário de Colbert. Sua biografia (Dicionário de Feller) diz que “as pessoas do mundo das letras lamentam nele a perda de um sábio profundo, e seus amigos, de um homem suave e benevolente.” Há em Tulle um cais com o seu nome. O Sr. Leymarie, que ignorava a história de São Pao, informou-se e teve a confirmação de que essas práticas supersticiosas ainda estão em uso.

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