Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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A propósito de nosso artigo do mês passado sobre a pastoral do Sr. Bispo de Argel, várias pessoas nos perguntaram se lho havíamos remetido. Ignoramos se alguém cuidou disto. Quanto a nós, não o mandamos, e eis a nossa razão:

Não temos a menor intenção de converter o Sr. Bispo de Argel à nossa opinião. Ele poderia ter visto na remessa direta daquele artigo uma espécie de bravata de nossa parte, o que não está em nosso caráter. Ainda uma vez, o Espiritismo deve ser aceito livremente e não violentar consciências; deve atrair a si pela força de seu raciocínio, a todos acessível, e pelos bons frutos que dá; deve realizar esta palavra do Cristo: “Outrora o Céu era tomado pela violência; hoje o é pela doçura.”

De duas, uma: ou o Sr. Bispo de Argel se limita a falar do que sabe, ou não se limita. No primeiro caso, ele deve por si mesmo pôr-se ao corrente da questão e não se limitar aos escritos que abundam neste sentido, se não quiser expor-se a erros lamentáveis. No segundo caso, seria trabalho perdido querer abrir os olhos a quem quer mantê-los fechados.

Grave erro é crer que a sorte do Espiritismo dependa da adesão de tal ou qual individualidade. Ele se apoia em base mais sólida: o assentimento das massas, nas quais a opinião dos menores pesa como a dos maiores. Não é uma pedra única que faz a solidez de um edifício, pois uma pedra pode ser retirada, mas o conjunto de todas as pedras que lhe servem de alicerce. Numa questão de tão vasto interesse, a importância das individualidades, consideradas em si mesmas, de certo modo se apaga. Cada um traz o seu contingente de ação, mas se algumas faltam ao chamado, o conjunto por isto não sofre.

Em sua opinião, o Sr. Bispo de Argel julgou que deveria fazer o que fez. Era um direito seu; diremos mais: fez bem em fazê-lo, pois agiu conforme sua consciência. Se o resultado não corresponder à sua expectativa, é que tomou um caminho errado. Eis tudo. Não nos cabe modificar as suas ideias e, por isto, não tínhamos que lhe enviar nossa refutação. Não a escrevemos para ele, mas para instrução dos espíritas de todos os países, a fim de assegurá-los quanto às consequências de uma manobra que provavelmente terá imitadores. Pouco importa, pois, a medida em si mesma. O essencial era provar que nem esta nem outras atingirão o objetivo visado: o aniquilamento do Espiritismo.

Em tese geral, em todas as nossas refutações jamais visamos os indivíduos, porque as questões pessoais morrem com as pessoas. O Espiritismo vê as coisas mais do alto. Ele se liga às questões de princípios, que sobrevivem aos indivíduos.

Num dado tempo, todos os atuais detratores do Espiritismo estarão mortos. Se em vida não puderam deter o seu impulso, podê-lo-ão ainda menos depois de mortos. Muito pelo contrário, mais de um, reconhecendo seu erro, sustentará, como Espírito, o que havia combatido como homem, como fez o defunto bispo de Barcelona, que recomendamos às preces de todos os espíritas, conforme o desejo por ele expresso.

Vede se já, antes de partir, mais de um antagonista não está morto moralmente! De todos os escritos que pretendiam pulverizar a doutrina, quantos sobreviveram? Um ou dois anos bastaram para pô-los no esquecimento, e os que mais ruído fizeram, apenas acenderam um fogo de palha, já extinto, ou em extinção. Mais alguns anos e não mais serão lembrados, e serão procurados como raridades.

Dá-se o mesmo com as ideias espíritas? Os fatos respondem à pergunta. Podese presumir que esses autores serão sucedidos por adversários mais temíveis, que terão razão contra o Espiritismo? É pouco provável, porque não é talento, nem boa vontade, nem alta posição que faltam aos de hoje. Eles estão plenos de fogo e ardor, mas o que lhes falta são argumentos que superem os dos espíritas, e certamente não é por que os não procurem. Ora, a ideia espírita ganhando partidários incessantemente, o número dos adversários diminuirá proporcionalmente, e estes serão forçados a aceitar um fato consumado.

Aliás, já dissemos que o clero não é unânime na reprovação do Espiritismo. Conhecemos pessoalmente vários eclesiásticos muito simpáticos a esta ideia, cujas consequências eles aceitam todas. Eis uma prova bem característica. O fato seguinte, cuja autenticidade podemos garantir, é bem recente.

Num vagão de estrada de ferro achavam-se dois senhores. Um deles era cientista, materialista e ateu no mais alto grau, e seu amigo, ao contrário, muito espiritualista. Eles discutiam calorosamente, cada um sustentando sua opinião. Numa estação subiu um jovem padre, que a princípio ouviu e depois entrou na conversa. Dirigindo-se ao incrédulo, disse-lhe:

─ Parece, senhor, que não acreditais em nada, nem mesmo em Deus!

─ É verdade, confesso, senhor padre, e ninguém ainda me provou que eu esteja em erro.

─ Então, senhor, eu vos aconselho a ir aos espíritas e crereis.

─ Como, senhor padre? Como falais assim?

─ Sim, senhor. Digo porque é a minha convicção. Sei, por experiência, que quando a religião é impotente para vencer a incredulidade, o Espiritismo triunfa.

─ Mas que pensaria o vosso bispo se soubesse que me dizeis isto?

─ Pensaria o que quisesse, e eu o diria a ele próprio, porque tenho por hábito não ocultar o meu modo de pensar.

Foi o próprio cientista que contou o caso a um amigo, do qual o colhemos. Eis um outro, não menos significativo:

Um dos nossos fervorosos adeptos, tendo ido visitar um de seus tios, cura de aldeia, encontrou-o lendo o Livro dos Espíritos. Transcrevemos textualmente o relato que nos deram da conversa.

─ O que, meu tio! Ledes este livro, e não temeis ficar louco? Certamente é para refutá-lo nos sermões.

─ Ao contrário, esta doutrina me tranquiliza quanto ao futuro, porque hoje compreendo bem muitos mistérios que não havia compreendido, mesmo no Evangelho. E tu, conheces isto?

─ Como não! Se conheço! Sou espírita de alma e coração e, além disto, um pouco médium.

─ Então, meu caro sobrinho, toca aqui! Nós jamais nos tínhamos entendido sobre a religião; agora nós nos entenderemos. Por que ainda não me tinhas falado? ─ Eu temia vos escandalizar.

─ Tu me escandalizavas muito mais outrora, por tua incredulidade.

─ Se eu era incrédulo, vós fostes a causa.

─ Como assim?

─ Não fostes vós que me educastes? E o que foi o que me ensinastes em matéria de religião? Sempre quisestes me explicar o que vós mesmo não compreendíeis. Depois, quando vos interrogava e não sabíeis responder, dizíeis: “Cala-te, infeliz! É preciso crer e não tentar compreender. Jamais passarás de um ateu.” Agora talvez eu vos pudesse objetar. Assim, sou eu que me encarrego de instruir meu filho. Ele tem dez anos e vos asseguro que é mais crente do que eu era naquela idade, entregue em vossas mãos, e não creio que jamais perca a sua fé, porque ele compreende tudo tão bem quanto eu. Se vísseis como ele ora com fervor, como é dócil, laborioso, atento a todos os seus deveres, ficaríeis impressionado. Mas dizei-me, meu tio, pregais o Espiritismo aos vossos paroquianos?

─ Vontade não me falta, mas compreendes que isto não é possível.

─ Falais sempre a eles da fornalha do diabo, como em meu tempo? Posso dizer isto agora sem vos ofender, mas realmente aquilo nos fazia rir. Entre os vossos ouvintes eu vos asseguro que só havia três ou quatro bondosas matronas que acreditavam no que dizíeis. As mocinhas, que normalmente são muito medrosas, depois do sermão iam fazer “o jogo do diabo.” Se esse medo tem tão pouco domínio sobre gente do campo, naturalmente supersticiosa, imaginai o que deve ser entre gente esclarecida. Ah! meu caro tio, já é tempo de trocar as baterias, porque o tempo do diabo acabou.

─ Bem sei, e o pior de tudo isto é que a maioria não crê mais em Deus do que no diabo, e por isto vão mais ao cabaré do que à igreja. Asseguro-te que muitas vezes me sinto embaraçado para conciliar o dever com a consciência. Procuro um meio-termo; falo mais de moral, dos deveres para com a família e a Sociedade, apoiando-me no Evangelho, e vejo que sou melhor ouvido e melhor compreendido.

─ Que resultado pensais que seria obtido se se lhes pregasse a religião do ponto de vista do Espiritismo?

─ Fizeste a tua confissão e vou fazer a minha, falando de coração aberto. Tenho a convicção de que em menos de dez anos não haveria um só incrédulo na paróquia e que todos seriam decentes. O que lhes falta é fé. Neles não há mais fé, e seu cepticismo, sem o contrapeso do respeito humano dado pela educação, tem algo de bestial. Eu lhes falo de moral, mas a moral sem a fé não tem base, e o Espiritismo lhes daria essa fé, porque essas criaturas, apesar da falta de instrução, têm muito bom-senso. Elas raciocinam mais do que a gente imagina, mas são extremamente desconfiadas, e essa desconfiança faz que queiram compreender antes de crer. Ora, para isto não há nada melhor que o Espiritismo.

─ A consequência do que dizeis, meu tio, é que se o resultado é possível numa paróquia, o é igualmente em outras. Se, pois, todos os curas da França pregassem apoiados no Espiritismo, a Sociedade se transformaria em poucos anos.

─ É a minha opinião.

─ Pensais que isto vai acontecer algum dia?

─ Eu tenho essa esperança.

─ E eu tenho a certeza que antes do fim deste século ver-se-á essa mudança.

Dizei-me, meu tio, sois médium?

─ Cale-se! (baixinho) Sim!

─ E o que vos dizem os Espíritos?

─ Eles me dizem que... (Aqui o bom cura falou tão baixo que o sobrinho não pôde ouvir).

Dissemos que a pastoral do Sr. Bispo de Argel não havia detido o impulso do Espiritismo nessa região. O resumo seguinte de duas cartas, entre muitas outras análogas, disto nos dá uma ideia:

“Caro e venerado mestre, confirmando a carta anterior, por ocasião da circular do Sr. Bispo de Argel, venho hoje renovar a certeza da dedicação inviolável de todos os espíritas do nosso grupo à santa e sublime doutrina do Espiritismo, que jamais nos persuadirão seja obra do diabo, pois ela nos arrancou da dúvida e do culto da matéria, e nos torna melhores uns para com os outros, mesmo para com os nossos inimigos, pelos quais oramos diariamente. Como no passado, continuamos nos reunindo e recebendo as instruções de nossos Espíritos protetores, que nos asseguram que tudo quanto se passa é para o melhor e segundo os desígnios da Providência. Todos nos dizem que estão próximos os tempos em que grandes mudanças vão operar-se nas crenças, às quais o Espiritismo servirá de elo para levar todos os homens à fraternidade...”


Uma outra carta diz:

“A pastoral do Sr. Bispo de Argel forneceu ao nosso cura, assunto para um sermão fulminante contra o Espiritismo, sobretudo às custas de sua eloquência.

Engano-me, porque ele causou tão forte impressão sobre muitos trocistas que estes, vendo o Espiritismo tomado a sério pela autoridade eclesiástica, disseram para si mesmos que aí deveria haver algo de sério. Então puseram-se a estudar e agora eles não riem mais, e são dos nossos. Aliás, o número de espíritas continua a aumentar e vários novos grupos estão em vias de formação.”

Toda a nossa correspondência é no mesmo sentido e não assinala uma só defecção, mas apenas pessoas cuja posição dependente da autoridade eclesiástica obriga a não se porem em evidência, sem contudo deixarem de ocupar-se do Espiritismo na intimidade, ou no silêncio de seu quarto. Eles podem impor atos exteriores, mas não dominar a consciência.

A comunicação abaixo prova que tanto entre os Espíritos quanto entre os homens, o impulso não diminuiu.

“Sétif, 17 de setembro de 1863.

“Meus amigos, venho a vós cheio de alegria, vendo o Espiritismo fazer rápidos progressos e diariamente adquirir novas forças, em meio aos entraves que lhe opõem. Essas forças não são apenas da quantidade, mas da união, da fraternidade, da caridade. Tende, pois, confiança, esperança e coragem, marchando nesta santa via do progresso espírita, da qual nenhuma força humana vos arredará.

“Contudo, esperai a luta e preparai-vos para sustentá-la. Aí estão os inimigos que vos forjam pesadas cadeias com que vos esperam vencer e domar. Que farão eles contra a vontade de Deus, que vos protege? As bases de sua lei elevar-se-ão, malgrado todos os empecilhos. Os servos do Todo-Poderoso estão cheios de ardor e zelo. Eles não se deixarão abater; eles resistirão a todos os ataques; eles marcharão pela estrada sempre e a despeito de tudo; os entraves, as cadeias quebrar-se-ão como se fossem de vidro.

“Eu vos digo, velai, orai, estendei a mão aos infelizes e abri os olhos que estão fechados. Que vossos corações e vossos braços a todos estejam abertos, sem exceção.

“Espíritas, vossa tarefa é bela! Que há de mais belo, de mais consolador que esse pacto de união entre os vivos e os mortos? Que imensos serviços nos poderemos prestar mutuamente! Por vossas preces a Deus, partidas do fundo do coração, muito podeis para o alívio das almas que sofrem, e quão suave é o benefício ao coração de quem o pratica! Que tocante harmonia a das bênçãos que houverdes merecido! Ainda uma vez, orai elevando a alma ao Céu, e ficai persuadidos de que cada uma de vossas preces será escutada e atenuará uma dor.

“Compreendei bem que quanto mais homens trouxerdes a vos imitar, mais poderoso será o conjunto de vossas preces. Tomai os homens pela mão e conduzi-os à verdadeira rota, onde aumentarão a vossa falange. Pregai a boa doutrina, a doutrina de Jesus, a que o Divino Mestre ensina em suas próprias comunicações, que repetem e confirmam a doutrina dos Evangelhos. Os que viverem verão coisas admiráveis, eu vo-lo asseguro.

“─ É preciso responder a essa pastoral pela imprensa?

“─ Meu Deus! Permiti-me dizer-lhes o que penso! Eles estabeleceram uma rota. Eles mandam varrê-la para que o povo nela passeie com mais comodidade e em maior número. Assim, a multidão vem aqui comprimir-se. Deveis compreender minha linguagem, um tanto enigmática. Vosso dever de espíritas é mostrar que eles abriram a porta em vez de fechá-la.

“SÃO JOSÉ”

OBSERVAÇÃO: Esta comunicação foi obtida por um operário, médium absolutamente iletrado e que apenas assinava o nome. A partir de quando se tornou médium, ele escreve um pouco, mas com dificuldade. Não se pode suspeitar, portanto, que a dissertação acima seja obra de sua imaginação.

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