Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Há um século a Sociedade era trabalhada pelas ideias materialistas, reproduzidas sob todas as formas, traduzindo-se na maioria das obras literárias e artísticas. A incredulidade estava na moda e era de bom-tom exibir a negação de tudo, mesmo de Deus. A vida presente, eis o positivo; fora disto tudo é quimera e incerteza; vivamos, pois, o melhor possível, porque depois, venha o que vier. Tal era o raciocínio de todos os que pretendiam estar acima dos preconceitos e, por isso, se diziam espíritos fortes. Força é convir que eram o maior número, dos que davam movimento à Sociedade e tinham o encargo de conduzi-la e cujo exemplo necessariamente deveria ter grande influência.

O próprio clero sofria essa influência. A conduta, particular ou pública, de muitos de seus membros, em completo descompasso entre os seus ensinos e os do Cristo, provava que eles não acreditavam no que pregavam, porque, se tivessem acreditado firmemente na vida futura e nos castigos, teriam preterido menos os interesses do Céu pelos da Terra.

Assim, tinham-se buscado todas as bases das instituições humanas na ordem das coisas materiais. Contudo, acabaram reconhecendo que faltava a essas instituições um sólido ponto de apoio, porquanto as que pareciam melhor assentadas se esboroavam num dia de tempestade; visto que as leis repressivas mascaravam os vícios, mas não tornavam os homens melhores.

Qual era esse ponto de apoio? Aí estava a questão, mas buscavam, e alguns acabaram por crer que Deus bem podia servir para alguma coisa no Universo. Depois, alguns Espíritos fortes começaram a ter medo, e para não mais rirem do futuro senão apenas nos lábios, diziam: Pretendem que tudo acaba com a morte, mas, em definitivo, que sabem disso os que o afirmam? Afinal de contas, é apenas a sua opinião. Antes de Cristóvão Colombo também se acreditava que nada houvesse além do oceano. E se houvesse alguma coisa além do túmulo? Contudo, seria interessante sabê-lo, porque, se houver algo, todos temos que passar por isso, porque todos morremos. Como se fica ali? Bem? Mal? A questão é importante e deve ser considerada. Mas se sobrevivemos, certamente não será o nosso corpo. Então temos uma alma? Assim, a alma não seria uma quimera? Então, como é essa alma? De onde vem? Para onde vai?

Daí uma vaga inquietação apoderou-se dos mais fanfarrões diante da morte. Começaram a procurar, a discutir, depois, reconhecendo que, fizessem o que fizessem, nunca estariam bem na Terra, e que por vezes até estariam muito mal, lançaram as vistas e as esperanças em direção ao futuro.

Todas as coisas extremas têm a sua reação, quando não estão de acordo com a verdade, pois só a verdade é imutável. As ideias materialistas haviam chegado ao apogeu. Então perceberam que elas não davam o que delas esperavam; que deixavam o vazio no coração; que elas abriam um abismo insondável, diante do qual recuavam com terror, como diante de um precipício. Daí uma aspiração pelo desconhecido e, em consequência, uma inevitável reação para as ideias espiritualistas, como única saída possível.

É essa reação que se manifesta há alguns anos. Mas o homem chegou às culminâncias da inteligência. Ora, a essa idade, em que a faculdade de compreender está adulta, ele não mais pode ser conduzido como na infância ou na adolescência. O positivismo da vida lhe ensinou a procurar. Dizemos mais, tornou-lhe necessário o porquê e o como de cada coisa, pois em nosso século matemático, há necessidade de termos consciência de tudo, de tudo calcular, de tudo medir, para sabermos onde pomos o pé. Quer-se a certeza, senão material, ao menos moral, até na abstração. Não basta dizer que uma coisa é boa ou má, quer-se saber por que ela é boa ou má, e se se há ou não razão para prescrevê-la ou proibi-la. Eis por que a fé cega não mais tem curso em nosso século raciocinador. Não pedem apenas para ter fé. Hoje desejam-na e sentem sua sede dela, pois ela é uma necessidade. Querem, porém, uma fé raciocinada. Discutir sua crença é uma necessidade da época, à qual, de bom ou de mau grado, é preciso resignar-se.

As ideias espiritualistas respondem bem às aspirações gerais, pois são preferidas ao cepticismo e à ideia do nada, porque se sabe, instintivamente, que estão certas, mas elas só satisfazem imperfeitamente, porque ainda deixam a alma no vago, porque por si sós elas são impotentes para dar a solução de uma porção de problemas.

O simples Espiritualismo está na posição de um homem que percebe o seu objetivo, mas que ainda não sabe qual o caminho para atingi-lo e que encontra escolhos sob seus passos. Eis por que, nestes últimos tempos, um tão grande número de escritores e de filósofos trataram de sondar esses misteriosos arcanos; por que tantos sistemas têm sido criados com o propósito de resolver os inúmeros problemasque continuam insolúveis.

Sejam esses sistemas racionais ou absurdos, nem por isto testemunham menos as tendências espiritualistas da época, tendências das quais não mais se faz mistério; das quais não se procura ocultar, e das quais, ao contrário, se gloriam, como outrora se gloriavam da sua incredulidade.

Se nenhum desses sistemas chegou à verdade completa, é incontestável que vários dela se aproximaram ou a afloraram, e que a discussão que se seguiu preparou o caminho, dispondo os Espíritos para tais estudos.

Foi nessas circunstâncias, eminentemente favoráveis, que chegou o Espiritismo. Um pouco mais cedo, ele ter-se-ia chocado com o materialismo todo-poderoso; em tempo mais recuado, teria sido abafado pelo fanatismo cego. Ele se apresenta no momento em que o fanatismo, morto pela incredulidade que ele mesmo provocou, não mais lhe pode opor uma barreira séria, e em que se está fatigado do vazio deixado pelo materialismo; no momento em que a reação espiritualista, provocada pelos excessos do materialismo, se apodera de todos os Espíritos, quando se está à procura das grandes soluções que interessam ao futuro da Humanidade.

Portanto, é neste momento que ele vem resolver estes problemas, não por hipóteses, mas por provas efetivas, dando ao Espiritismo o caráter positivo, único que convém à nossa época. Aí se encontra o que se busca e que se não encontrou alhures. Eis por que o aceitam tão facilmente. Milhares de órgãos lhe abriram e continuam abrindo caminho, semeando pouco a pouco as ideias que ele professa. Não se deve crer que neste caso haja apenas obras sérias, lidas por um pequeno número de eruditos! Notai quanto, sob a forma leve do romance ou do boletim, abundam no momento os pensamentos espíritas, que penetram em toda parte, até mesmo nos que menos nele pensam. São outros tantos germes latentes que eclodirão quando vier a grande luz, pois estarão familiarizados com as ideias novas.

Um dos mais importantes princípios do Espiritismo é, sem contradita, o da pluralidade das existências corpóreas, isto é, da reencarnação, que os cépticos confundem, voluntariamente ou por ignorância, com o dogma da metempsicose. Sem este princípio a gente se choca com tantas dificuldades insolúveis na ordem moral e psicológica, que muitos filósofos modernos a ele foram conduzidos pela força do raciocínio, como a uma lei necessária da Natureza. Tais são Charles Fourier, Jean Reynaud e muitos outros.

Este princípio, hoje discutido abertamente por homens de grande valor, sem que, por isto, sejam espíritas, tem uma tendência manifesta de introduzir-se na filosofia moderna. Uma vez de posse dessa chave, ele verá abrirem-se à sua frente horizontes novos, e as dificuldades mais árduas serão aplainadas como que por encanto. Ora, ele não pode deixar de atingir esse ponto. Para aí será conduzido pela força das coisas, porque a pluralidade das existências não é um sistema, mas uma lei da Natureza, que ressalta da evidência dos fatos.

Sem ser tão claramente formulado quanto em Fourier e Reynaud, nem erigido em doutrina, o princípio da pluralidade das existências agora se acha numa porção de escritores, e consequentemente em todas as bocas, de sorte que pode-se dizer que está na ordem do dia e tende a tomar lugar entre as crenças religiosas vulgares, posto que, em muitas, ele precede o conhecimento do Espiritismo. É uma consequência natural da reação espiritualista que se opera no momento, e à qual o Espiritismo vem dar forte impulso.

Para as citações, não teríamos senão a dificuldade na escolha. Limitar-nosemos à passagem seguinte, de um dos últimos romances da Sra. George Sand: Mademoseille de la Quintinie, notável obra filosófica, posta no índex pela cúria romana, bem como a Revue des Deux Mondes, que a publicou nos números de 1º e 15 de março, abril e maio de 1863. Nessa passagem, trata-se de um sacerdote muito culpado, levado ao arrependimento, à reparação e à expiação terrenas pelos severos conselhos de um leigo que, entre outras coisas, lhe diz isto:

“Dizeis que passastes a idade das paixões!... Não, porque entrais na das vinganças e perseguições. Cuidado! Contudo, seja qual for a vossa sorte entre nós, vereis claro um dia no além-túmulo, e como não creio mais nos castigos sem fim do que nas provas sem frutos, eu vos anuncio que nos encontraremos nalgum lugar, onde nos entenderemos melhor, e onde nos amaremos, em vez de nos combatermos. Mas, como vós, não creio na impunidade do mal e na eficácia do erro. Creio que expiareis o voluntário endurecimento de vosso coração por grandes dilacerações do coração em outra existência. Só vos cabe entrar na via direta da felicidade progressiva, pois estou certo que tudo pode ser resgatado a partir desta vida. A alma humana é dotada de magníficas forças de arrependimento e de reabilitação. Isto não é contrário aos vossos dogmas, e vossa palavra constrição diz muito”.

Em próximo artigo examinaremos a obra do Sr. Renan sobre a vida de Jesus e mostraremos que, malgrado suas aparências e sem que o autor o saiba, é uma reação espiritualista. O materialismo, por mais que proclame o nada, em vão sacode o círculo da lógica e da consciência universal que o encerra. Seus últimos gritos são abafados pela voz que lhe grita dos quatros cantos do mundo: “Nós temos uma alma imortal”. Mas, em proveito de quem será a reação? É o que nos dirá um futuro que não está distante.

Esperando que falemos da obra do Sr. Renan, recomendamos com insistência aos nossos leitores uma pequena brochura, na qual a questão nos parece encarada de um ponto de vista muito racional, e que contém observações muito preciosas sobre esse delicado problema. Seu título é: “Réflexions d’un orthodoxe de 1’Église grecque sur la vie de Jésus, por M. Renan (Didier e Cia. Preço 50 cêntimos).

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